“Essa bomba explodiu no meu peito”, disse o general João Batista Figueiredo ao saber do atentado do Riocentro, em maio de 1981. Foi uma reação sincera, mais uma frase gerada pelos impulsos espontâneos do oficial de cavalaria do Exército. O problema é que o peito do último presidente do regime militar estava dividido ao meio.
De um lado, havia o seu compromisso de concluir a transição para um governo civil, através da distensão “lenta, gradual e segura” que seu antecessor, o general Ernesto Geisel, lhe legou. Mas o outro lado do peito presidencial estava tomado pela conspiração para impedir a volta dos civis ao poder.
Essa metade queria contornar a vedação constitucional à reeleição e arrancar um segundo mandato presidencial para Figueiredo. Se não conseguisse, ia tentar impor ao Congresso Nacional a candidatura do general Otávio Aguiar Medeiros.
Amigo íntimo de Figueiredo, Medeiros foi o chefe que por mais tempo permaneceu à frente do Serviço Nacional de Informações, que o próprio Figueiredo comandara por cinco anos. E o mais poderoso, justamente pelo apoio integral que recebia do presidente (depois dele, o SNI foi se desfazendo até morrer, substituído pela Abin).
Oficiais do Exército que eram agregados ao SNI não voltavam à caserna depois de dois anos, como mandava o regulamento militar. Ficavam por quanto tempo o “serviço” queria. O SNI tinha nada menos do que uma fábrica, a Prólogo, para produzir criptógrafos. Tinha também uma escola de primeira (até com os mais modernos equipamentos para o ensino de línguas) para formar o que hoje é conhecido por “araponga”, além de recursos ilimitados e autorização para agir clandestinamente. Sem falar numa estação de televisão interna.
Era a quarta força e, embora informal, chegava a ter um poder sem igual. Antes de Medeiros aspirar ao posto, o SNI dera dois dos cinco presidentes militares (Garrastzu Médici, além de Figueiredo), excluída a junta formada pelos comandantes das três forças armadas convencionais, que exerceu a presidência diante da impossibilidade de Costa e Silva, por doença grave, seguida de morte.
Seu maior aliado era o Centro de Informações do Exército, o mais poderoso das três armas, e o DOI Codi, unidade dotada de quase completa autonomia dos comandos hierárquicos. Era a “comunidade de informações”. Ela foi mobilizada para brecar e sabotar o projeto da distensão. E tratar de tornar possível a reeleição do presidente ou a candidatura de Medeiros. Civil no topo do poder, nunca. Tancredo Neves, nem pensar. Os articuladores da passagem de bastão eram traidores. Os oponentes do regime, inimigos que precisavam destruir.
Para sustentar a candidatura do seu chefe, o SNI tentara montar um sistema de comunicação a partir da compra da outrora poderosa revista O Cruzeiro, dos Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand. O negócio não deu certo porque o jornalista encarregado de dirigir a revista, Alexandre Baumgarten, era um escroque. Indo além do seu papel para tirar maior proveito pessoal, acabou chantageando seus padrinhos e foi morto em condições misteriosas.
A outra fonte de apoio teve igual destino. A “comunidade” lançou mão da Capemi, uma caixa de pecúlio e benefícios dos miltares, desviada da sua especialidade para assumir o contrato para a extração de madeira que seria inundada pelo represamento do rio Tocantins para a construção da hidrelétrica de Tucuruí. Na prática, o projeto madeireiro se mostrou inviável, mas o que os organizadores do negócio queriam era desviar o dinheiro emprestado à Capemi para o fundo de campanha de Medeiros. Quanto mais o projeto gastava, mais era possível formar o caixa 2.
Mas foi numa iniciativa que não tinha a ver com esses objetivos que os “radicais mas sinceros”, conforme definidos por Geisel, se deram pior. O atentado do Riocentro visava intimidar a esquerda através da explosão do centro de convenções durante o espetáculo, atentado terrorista do nível – ou talvez mais grave – do que o planejado pelo brigadeiro Burnier antes. Ele pretendia explodir o gasômetro do Rio de Janeiro. A culpa seria lançada sobre os largos costados da esquerda, desgastando-a junto à sociedade e influindo sobre a tropa.
O fracasso do atentado representou um tiro pela culatra. Daí o general-presidente ter sentido a bala no próprio peito. A metade clandestina e conspirativa teve refluxo. A outra continuou a evoluir, para o bem do Brasil.
É neste contexto que a publicação da segunda parte minha matéria sobre a reação do coronel Nivaldo de Oliveira Dias ganha relevância.
Provavelmente no dia 19 de maio [de 1981] o coronel redigiu seu relatório interno para a tropa do 2º BIS. Incluiu no relatório um tópico que reconstituía o registro anterior do RPI sem transcrevê-lo literalmente. Provavelmente era medida acautelatória de nova prisão ou qualquer outra punição. Ao mesmo tempo se referia ao seu afastamento da tropa. Dizia o tópico:
“Cabe à 8ª Região Militar explicar o motivo da minha substituição, pois o 2º BIS está diretamente subordinado àquele comando.
Sinto-me na obrigação de declarar que não é soltando bombas que vamos constituir uma democracia e combater o comunismo, e nem o Exército pode acobertar esses atos criminosos que atentam contra a instituição e a pátria, quaisquer que sejam os seus autores.
Princípios pessoais
Eu não alimento dúvidas de que as duas explosões do Riocentro foram da responsabilidades de integrantes de um órgão de informações do Exército e de que essa conclusão, bem como outras de igual importância já são do conhecimento das autoridades competentes, que estão na obrigação de revelar a verdade e de tomar as providências indispensáveis e urgentes que toda a nação brasileira anseia”.
Apesar desse conteúdo mais forte, a nota foi lida e circulou sem maiores reações, talvez porque permanecia no âmbito do quartel. Mas, evidentemente, impressionou toda a oficialidade pela sua forma incisiva. O general Waltencyr chamou novamente o coronel ao QG para conversarem. O general disse que o coronel cometeu um erro, mas o coronel ficou com a impressão de que não seria punido de novo.
Essa impressão veio da forma como foi adotada a primeira punição, ao seu primeiro relatório. Ele podia já trer sido preso, mas foi apenas exonerado do comando do BIS. Na ocasião, o general Waltencyr lhe pediu que aceitasse passar o cargo no gabinete do comando da 8ª RM. O coronel recusou, exigindo a solenidade regulamentar no batalhão. O general teve que concordar, onde se estabeleceu um clima de agitação. O tenente-coronel Monte, subcomandante, não queria aceitar o cargo. O coronel Nivaldo diz que o demoveu dessa intenção, depois de muita conversa. Já o capitão Romão anunciou que a sua companhia não desfilaria. Foi convencido a mudar de ideia. Mas não prestou continência ao general, talvez seguido por outros integrantes da companhia.
O coronel passou um radiograma ao ministro do Exército. Solicitou explicações sobre as razões da sua demissão e ingressou com um pedido de reconsideração do ato punitivo.
Nós conversamos longamente. Eu lhe perguntei se ele era da Centelha Nativista ou do grupo do coronel Tarciso. Ele reagiu com certa indignação e muita veemência. Disse que não pertencia a grupo algum e era contra grupismos dentro das Forças Armadas, que considera responsável pela situação atual, em que a corporação é utilizada para benefício de uma minoria. Diz que se encontrou poucas vezes com o coronel Tarciso em Recife e que não chegou a integrar um staff do general Euler nem se ligou sistematicamente a uma corrente. Diz que agiu por princípios pessoais, como sempre fez.
(Como se sabe, o coronel foi preso depois desse relato, pediu em seguida para passar para a reserva e abandonou a vida pública.)
Leia também
Um coronel contra o Riocentro – L.F.P.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)