Uma vez, em um agradável almoço à paisana com um jornalista, terminávamos o prato principal quando, em meio à conversa, ouvi dele:
– Eu não sei por que as pessoas me contam as coisas se elas sabem que eu publico.
Uma censura brusca me fez perder o assunto. Não consegui mais ser natural. A profissão define nossas relações sociais. O humorista fará piada com a sua desgraça, o escritor te roubará as histórias e o jornalista usará a sua informação.
Por isso, dentre todas as amizades que desenvolvi na vida, a por Mario Sergio Conti é uma das mais longevas e misteriosas.
Eu o conheci em 1986. Mario Sergio era repórter da “Veja” e eu lançava quatro filmes, além de encarnar a mocinha da novela das oito. Ele sugeriu uma capa comigo, eu fiz e, um mês depois, recebi a Palma de Ouro como melhor atriz no Festival de Cannes. O prêmio confirmou a aposta da revista.
Desde então, viramos testemunha ocular da história do outro. Depois do súbito estrelato, o cinema acabou e eu fui fazer teatro experimental. O Mario assumiu a editoria da “Veja” e, de vez em quando, nas suas raras visitas à Guanabara, saíamos para almoçar.
Lembro-me de ele torcer o nariz para a minha opção pelo alternativo. Era possível notar o peso do cargo na fisionomia do Mario. Foi seu período mais sisudo, niilista, tinha muito poder, fumava muito e não me lembro de vê-lo sorrir. A controversa capa de Cazuza aconteceu por aí, o impeachment de Collor, também.
Valor das ideias
Amante de Proust e de João Gilberto, a ponto de não admitir qualquer outro baiano, Mario é o jornalista mais jornalista que conheço. Sempre me senti próxima e, ao mesmo tempo, desconfiada dele.
Certa vez, durante uma gripe violenta, ele me ligou de São Paulo. Conversamos uns bons 20 minutos sobre coisa nenhuma, eu reclamando da saúde, até que ele disse que um médico passara a informação de que eu estava com Aids, jurava ter visto meus exames, e ele queria saber se era verdade.
Me arrependi de ter mencionado a virose. Fiz um exame no dia seguinte e pedi que entregasse ao doutor. Durante muitos anos, mantive nossa amizade em suspenso, sem saber se eu estava diante do amigo ou do profissional de imprensa. Era uma mescla dos dois.
“Notícias do Planalto” o levaria ao exílio voluntário na França. “Notícias” é daqueles livros que têm que ser lidos, fala menos da ascensão e queda de Fernando Collor e mais, muito mais, da imprensa.
Mario disseca a saga dos principais jornais, revistas e empresas de comunicação do país. A epopeia custou-lhe centenas de inimizades. A saída mais próxima foi o aeroporto. Na França, viveu como correspondente da TV Bandeirantes, exercitando a falta de jeito para o telejornalismo.
E foi assim que eu vi o Mario, que tanto torcia o nariz para a minha carreira experimental, virar, ele mesmo, um outsider.
João Salles foi buscá-lo em Paris, para propor a criação de uma revista. Ele tinha um esboço no bolso desde que deixara o Brasil. Do encontro, saiu a “Piauí”. Sua temporada carioca como editor da revista nos aproximou em definitivo.
Devo ao Mario escrever. Os artigos que me encomendou para a “Piauí” me abriram outro horizonte. Sou muito grata a ele, o meu personal editor, a quem recorro nas horas de dúvida.
Quando aventei publicar as crônicas, perguntei se ele faria o prefácio. O Mario me aconselhou a pensar duas vezes, temendo que seus desafetos acabassem por me prejudicar.
Quando soube que ele aceitara o posto de âncora do “Roda Viva”, em São Paulo, lamentei a partida e duvidei do seu talento para comunicador. Mas, assim como fizera na “Piauí”, Mario Sergio confiou no valor das ideias, no conteúdo livre de partidarismo e trouxe o “Roda Viva”, novamente, para o centro das discussões de uma camada pequena mas influente de espectadores.
Pautas da hora
Janio de Freitas falou de imprensa, Boni da TV, Laerte sobre comportamento, a Mídia Ninja deu as caras, Marcelo Freixo se apresentou e Fernando Henrique Cardoso foi consultado.
O programa existia antes dele e continuará a existir depois. Não sei o que causou a saída, não escrevo para tomar partido, ou defendê-lo. Escrevo porque me impressionou a forma como, atuando em uma TV Educativa, ou em uma revista mensal de tiragem reduzida, Mario conseguiu pautar muitos dos temas que vi debatidos no Brasil desde a sua volta.
Aguardo atenta a sua próxima empreitada.
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Fernanda Torres é atriz, colunista da Folha de S.Paulo