Marqueteiro, jornalista e produtor de cinema. Esse era o currículo de Raúl Apold, homem encarregado da comunicação do governo do general Juan Domingo Perón entre 1946 e 1955. Estrategista na política de “domesticar” a mídia, era chamado pela oposição de “o Goebbels de Perón”, em alusão a Joseph Goebbels, chefe da Propaganda de Adolf Hitler. Apold foi crucial na construção da mística do peronismo e andava esquecido até que a escritora Silvia Mercado, especialista em comunicação estratégica, lançou o livro O inventor do Peronismo. “Tal como ocorre agora no kircherismo, o governo de Perón fazia publicidade sobre mentiras. E, muitas outras, eram fatos reais, embora magnificados”, explicou Mercado em entrevista ao Estado de S.Paulo.
Como foi que o casal Kirchner se interessou pela vida de Raúl Apold?
Silvia Mercado – Foi em 2008, quando o ex-presidente Néstor Kirchner, que começava a se confrontar com o Grupo Clarín, foi apresentado a uma pessoa cuja identidade mantenho em reserva, que havia conhecido Apold no fim de sua vida e conversado com ele detalhadamente sobre sua política de mídia. Essa pessoa disse a Kirchner que o maior investimento de Perón para a posteridade não foram os sindicatos nem as obras públicas, mas sim o peronismo, construído por Apold e pelo aparato de propaganda do Estado. Essa pessoa também disse a Kirchner que Perón, em uma primeira fase, comprou os jornais que estavam com problemas financeiros. E, numa segunda fase, criou dificuldades para os jornais que tinham boa saúde econômica. Kirchner ouviu atentamente. Poucos dias depois, ele e sua mulher, a atual presidente Cristina, começaram a preparar a Lei de Mídia e os ataques contra o Grupo Clarín e outros meios. Além disso, ele fez com que empresários amigos comprassem vários meios de comunicação, entre os quais o canal C5N e o jornal Página 12. Depois de comprar as empresas fracas, tentou comprar as fortes, como o caso do Clarín. Mas, nesse caso, não deu.
Qual foi o modus operandi de Apold para ter a mídia a seu favor?
S.M. – Na época de Perón, existiam grandes meios de comunicação com elevado prestígio que tinham influência na opinião pública. O plano de Apold para Perón era o de comprar o poderoso jornal La Prensa, o principal da América Latina na época. No entanto, os donos não aceitaram. Aí, ele pressionou com a redução da cota do papel-jornal. Contudo, o La Prensa continuava resistindo, para irritação de Perón. O jornal tinha de circular com um volume exíguo de páginas. Por esse motivo, teve de reduzir o tamanho da fonte dos textos. As pessoas tinham de ler o La Prensa com uma lente. O governo, finalmente, mandou um projeto de lei ao Parlamento para expropriar o jornal e o colocou nas mãos dos sindicatos.
Seis décadas depois dos primeiros governos de Perón, as pressões contra a imprensa são parecidas?
S.M. – Apold mandava os técnicos sanitários aos jornais não alinhados para fiscalizar os banheiros e, com isso, encontrava argumentos legais para o fechamento das empresas. O governo também ordenava ao sindicato dos jornaleiros fazer greve para não distribuir os jornais inimigos. Hoje em dia, a tática do governo Kirchner é quase a mesma: envia a Receita Federal para fazer uma blitz e o sindicato dos caminhoneiros para bloquear a porta das gráficas ou controla a produção de papel-jornal. Perón e os o casal Kirchner possuem em comum a convicção sobre a importância da comunicação na hora de construir o poder político.
A construção da imagem de Evita, após sua morte, por parte de Apold e Perón tem paralelos com o funeral de Kirchner e a criação de uma imagem mítica do ex-presidente?
S.M. – Apold era um grande marqueteiro, que inventou vários slogans do peronismo, como o “Perón cumpre, Evita dignifica”. Porta-voz presidencial, colocou os recursos do Estado para grandes mise-en-scène, como os discursos de Perón e o funeral de Evita, em 1952. Apold era muito intuitivo e tinha o sentido teatral e cinematográfico da estética. Além disso, graças ao trabalho de mídia de uma equipe de 1.300 pessoas, construiu uma religiosidade popular ao redor do mito de Evita, construindo sua imagem de santa. Seis décadas depois, Cristina Kirchner colocou na tarefa de preparar o visual do velório de Kirchner o produtor de espetáculos Javier Grossman. No entanto, Cristina não conta com um Apold. Ela possui diversas pessoas, entre elas Grossman, o chefe do gabinete de ministros, Juan Abal Medina, e o secretário de comércio interior, Guillermo Moreno, que fazem hoje em dia o trabalho que Apold fazia nos anos 40 e 50.
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‘Perdoamos pecados, menos a derrota’
Os peronistas possuem um ditado de circulação interna que indica que os integrantes do movimento criado pelo general e presidente Juan Domingo Perón (1895-1974) são benevolentes perante guinadas ideológicas e casos de corrupção. Mas o ditado indica que a condescendência tem um limite: “Nós, peronistas, perdoamos qualquer pecado, exceto o pecado da derrota”.
O único peronista que conseguiu dar-se ao luxo de continuar como líder incontestável mesmo fora do poder foi o próprio Perón, que amargou 18 anos de exílio após ser derrubado por um golpe militar em 1955. De Madri, ele controlou os peronistas na Argentina – por intermédio de ocasionais emissários e discursos em fitas cassete. Ao voltar ao país, em 1973, foi reeleito com 62% dos votos (um recorde até hoje).
No entanto, admitem os peronistas, Perón foi um só. Carlos Menem foi eleito presidente pela primeira vez em 1989 e reeleito em 1995. Mas em 1997 perdeu as eleições parlamentares para a coalizão de oposição Aliança UCR-Frepaso. A partir dali, Menem começou a perder aliados (entre eles, o casal Kirchner) e o poder, com o consequente arquivamento de seus planos para mudar a Constituição e tentar implantar o sistema de reeleições presidenciais indefinidas.
Os peronistas de Menem, os menemistas, começaram a travestir-se como duhaldistas (do ex-presidente Eduardo Duhalde) ou passaram para o Frepaso, partido de centro-esquerda que reunia os peronistas dissidentes da ala centro-esquerda.
Menem, sem poder mudar a Constituição, entregou a presidência em 1999. Na época, controlava 120 deputados. Doze meses depois, em dezembro de 2000, longe da Casa Rosada e das verbas federais, contava com a lealdade de três deles, um sobrinho, seu irmão e uma amiga.
Em 2009 Cristina sofreu com o êxodo de peronistas kirchneristas quando foi derrotada nas eleições parlamentares. Mas, diante da pulverização da oposição, a presidente deu uma virada e, apostando na reeleição em 2011, uniu novamente o kirchnerismo.
No entanto, a derrota nas eleições primárias deste ano deram início a novo êxodo kirchnerista.
A lealdade peronista – considerada a principal commodity do partido que governou a Argentina por 35 dos últimos 67 anos – tem seus limites. E isso é corroborado por outro velho ditado que peronistas costumam citar: “Os peronistas te acompanham até a porta do cemitério, mas não entram”. (A.P.)
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Ariel Palacios é correspondente do Estado de S.Paulo em Buenos Aires