Um dedo perdido, membro fantasma que se transforma em consciência crítica, inquisidora. Um dedo que já apontou para falcatruas e malfeitos, mas que agora se volta contra o próprio dono, rasteja em sua direção, sempre em riste, acusando. E o espanto no meio da noite, com os olhos esbugalhados, insone, um personagem acuado, frágil, tenta se proteger puxando as cobertas para cima. No lugar do sono dos justos, um pesadelo surrealista. Claros e escuros. Luz e trevas. Não foi à toa que a charge de Spacca venceu, em 2005, a 32ª edição do Salão Internacional de Humor de Piracicaba: era o auge do escândalo do mensalão do governo Lula.
Existe um aspecto pedagógico na arte dos cartunistas e chargistas. Fazendo rir, eles fustigam os costumes, sacodem as pessoas, convidam à reflexão, estimulam a mudança e, às vezes, até derrubam regimes. Com salutar e bem-humorado realismo, recordam que as pessoas são imperfeitas, as instituições sociais são contingentes e as tradições culturais são criações humanas que podem, e devem, evoluir.
Mas há quem se enxergue e a seu mundo com excessiva seriedade. Existe, por isso, um aspecto perigoso na arte dos cartunistas e chargistas. Eles podem sofrer os revides de pessoas incomodadas, as retaliações de regimes tirânicos, ou a intolerância de tradições culturais ou religiosas encerradas em si mesmas. É claro que chargistas e cartunistas podem igualmente cometer excessos, ou deixar-se impregnar por preconceitos. O remédio para eventuais abusos não pode ser a censura prévia e nem a intimidação pela truculência, pois isso significaria falta de liberdade, obscurantismo.
O Salão Internacional de Humor de Piracicaba, cuja edição deste ano vai até 20 de outubro, é a demonstração dos méritos e dos riscos dessa arte crítica por excelência. O evento surgiu em 1974, em meio à ditadura militar, como uma iniciativa corajosa de um grupo de jornalistas, artistas e intelectuais, todos da cidade de Piracicaba, que costumavam se reunir num conhecido bar da cidade, o Café do Bule.
Rir melhor
Cartunistas brasileiros contribuíram para a transformação do Salão de Piracicaba num dos mais importantes encontros do humor gráfico do Brasil e exterior, entre eles: Ziraldo, Fortuna, Millôr, Zélio, Henfil, Jaguar, Luis Fernando Verissimo, Paulo e Chico Caruso, Miguel Paiva, Angeli, Laerte, Glauco, Edgar Vasques, Jaime Leão, Gual e Jal.
Não foi combinado, nem planejado. Mas, segundo as palavras do escritor e cartunista Luiz Fernando Verissimo, o Salão de Humor de Piracicaba “lançado em plena ditadura militar seria um salão de humor e seria outra coisa”. Diz Verissimo:
“Essa outra coisa nunca teve um nome exato. Barricada? Resistência? Válvula de escape? Travessura heroica? O fato é que desde os primeiro salões lá estavam, em Piracicaba, o Millôr, o Jaguar, o Henfil, o Zélio, os Carusos – todos levados pelo instinto e pela necessidade da outra coisa”.
Ao completar 40 anos em 2013 e considerado um dos salões mais importantes do mundo no universo das artes gráficas, continua cumprindo seu papel na valorização do desenho de humor: um espaço de reflexão, inteligência e arte que revela novos talentos, mostram profissionais consagrados e resgata autores e obras históricas.
Foram eles que fizeram de Piracicaba a capital do humor do traço – ou do humor gráfico, como também é chamado. Para saber quem foi o pai da criança, nada melhor do que as palavras do engenheiro Luiz Antônio Lopes Fagundes:
“O verdadeiro pai do Salão foi a união da vontade de todos, uns com ideia, outros com ação, mobilidade e outros com a vontade de fazer. Sua permanência significará a garra e a vontade da cidade em realizá-lo cada dia melhor”.
Segundo o filósofo alemão Immanuel Kant, o riso é uma benção que ajuda a humanidade a suportar os dissabores da vida. Quando o humor é utilizado como forma de crítica social, com o propósito de despertar a consciência contra as desigualdades originadas em determinados sistemas de governo, todos rimos muito melhor. E nós, brasileiros, somos conhecidos mundo afora como um povo alegre, mesmo com as mazelas que acometem nosso país. Isso tudo é o que se constata nas visitas à Piracicaba nestes tempos de Salão.
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Hubert Alquéres dirigiu a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo entre 2003 e 2011. É vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro e professor no Colégio Bandeirantes