Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Duas dedicatórias e muitas histórias

Frequento sebos há meio século. Conheço os principais do Brasil e alguns das Américas e Europa. Com o tempo aprendi a procurar mais do que livros velhos para ler ou colecionar. Os livros me servem de pistas para reconstituir parte da vida dos seus donos e da história em que eles atuaram. Os rastros podem ser as anotações do leitor do livro usado ou as dedicatórias nele inscritas. Na garimpagem que faço, costumo encontrar pepitas de ouro. Vou partilhar com o leitor duas delas.

Uma foi dedicada a Enéas Martins por Veiga Simões no seu livro Daquem & Dalem Mar, publicado pela Tipografia da Livraria Palais Royal, de Cesar Cavalcanti & Cia., em Manaus, em 1916, na transição entre o ápice e a decadência da exploração da borracha na Amazônia. A dedicatória, simples, apenas homenageando o destinatário, é de 26 de dezembro desse mesmo ano. O então governador do Pará estava em Manaus – talvez para o lançamento ou por acaso. Alguns traços que fez indicam que ele leu todo o livro, muito interessante, aliás.

Enéas Martins morou na capital baré durante quatro anos para escapar a perseguições políticas que sofreu por causa da Folha do Norte. Ele fundou o jornal, em 1896, principalmente para combater o principal líder político local em ascensão, Antonio Lemos, e sua A Província do Pará, um dos melhores jornais do Brasil nessa época, além de defender o Partido Republicano Federal, chefiado por Lauro Sodré. A Folha ficou sob o controle de outro dos seus sócios nessa empreitada, Cipriano Santos. Em 1917 foi a vez de Cipriano pular o muro, se elegendo senador estadual (o equivalente atual do deputado estadual) e intendente (prefeito) de Belém. Seu lugar foi ocupado pelo então revisor de provas do jornal, Paulo Maranhão, que comandaria a Folha do Norte durante meio século, até morrer, em 1966. Sete anos depois, seu jornal, em franca decadência, foi vendido a Romulo Maiorana, que comprara O Liberal exatamente em 1966. A gloriosa Folha se manteve por apenas um ano: foi fechada em 1974. A partir daí circularia episodicamente para que seu dono não perdesse o título.

Poema épico

A outra dedicatória é do ano seguinte: foi assinada em 17 de junho de 1917, em Milano (Milão), na Itália, no volume em italiano de Orlando Furioso, o famoso poema de Ariosto, que Gama Malcher ofereceu a Lauro Sodré, “em nome de sua família”. O livro está muito desgastado. Perdeu a folha de rosto e a encadernação é ruim. Fez parte do acervo de Eduardo Failache, dono da Livraria Econômica (mais conhecida por “Sebo do Dudu”), que impunemente sapecou, com tinta de caneta, o número do exemplar, na contracapa da encadernação: 734. Era sua marca registrada, embora um tanto inconveniente.

Se não o próprio Lauro Sodré, que era verdadeiramente um intelectual, com acesso a línguas estrangeiras, alguém leu o vasto poema épico. Talvez, quem sabe, pelos discretos sinais à margem do texto (a única intervenção do leitor do livro), possa ter sido o grande mestre Eidorfe Moreira.

Quanta história.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)