Difícil dizer o que é mais deplorável no episódio dos embargos infringentes, que podem resultar na virtual absolvição dos peixes graúdos do escândalo do mensalão: se a confirmação do espírito dissoluto das leis brasileiras ou a pusilanimidade dos que acendem uma vela para Deus e duas para o diabo, que se apegam a apensos na letra fria das leis em detrimento de princípios de ética e moralidade que fundamentam não só os cânones legais como o convívio humano. O fato de o probo ministro Celso de Mello ter sido abduzido por um desses escaninhos da lei, após ter passado meses proferindo os mais duros pareceres contra os mensaleiros, passou a ser secundário para os bufões midiáticos a serviço da causa petista.
Exageros à parte, haja cara de pau para negar que a perspectiva de que um julgamento que parecia fadado a ser um divisor de águas no judiciário brasileiro termine numa homérica pizza, como ironizou o ministro Gilmar Mendes, decepcionado com o acolhimento dos embargos infringentes a favor dos catorze réus mais imputados na Ação Penal 470, e repercutido muito mal em todos os setores da sociedade. Os que agora debocham das menções a esse tipo de reação, que mesmo figurativamente corresponde ao que se costuma chamar de opinião publica, deveriam sair de seus casulos para ouvir o que se diz nas ruas, nas conversas banais entre amigos, nas filas dos bancos, nas padarias. Isso se a recente mobilização popular e as crescentes manifestações via redes sociais já não evidenciassem uma clara rejeição a excrescências desta natureza.
Afirmar que a opinião pública assim configurada é mera peça de ficção equivale a dizer que vivemos num mundo de alienados, no qual ninguém liga e nem faz ideia do que está acontecendo ou, pior ainda, que todos são indiferentes às barbaridades que nos são impingidas. Barbaridades cujo efeito cumulativo explica o desejo de justiça que teima em não se concretizar – daí a frustração, a revolta, e até os exageros que os idiotas da objetividade, como diria Nelson Rodrigues, procuram desqualificar, em nome da hipócrita lógica do politicamente correto.
À beira de um abismo
Ora, se mesmo os juristas divergiram sobre a validade dos embargos infringentes no caso dos mensaleiros, contestar e até esbravejar contra sua aceitação não significa renegar e muito menos vilipendiar o Estado de direito que, mal ajambrado ou não, está aí para o que der e vier. O que se fez, em alto e bom som, foi questionar a legitimidade moral de subterfúgios jurídicos que parecem ter sido feito sob encomenda para vigaristas e causídicos espertalhões. E o que faz a alegria dessa gente, convenhamos, nem de longe é compartilhado pelas pessoas de bem, cujas vozes obviamente incomodam setores que acreditam ter o monopólio da verdade.
Ainda que o julgamento do mensalão tenha sido, inegavelmente, espetacularizado e politizado – e nem poderia ser diferente, considerando que os réus são exatamente… políticos –, é impressionante como se tenta mitigar uma culpabilidade fartamente ilustrada e esmiuçada em quase uma década de apurações, mediante uma brecha jurídica que só foi acatada graças à providencial substituição de dois integrantes da Suprema Corte. Este é o ponto. Não fosse a demora, a deliberada embromação orquestrada por membros que desde o início se mostraram claramente receptivos à causa dos mensaleiros e o assunto já estaria liquidado. Com os réus devidamente encarcerados, cumprindo suas penas como qualquer ladrão de galinha.
Mas não. Dispondo dos inestimáveis serviços de especialistas em transitar no lodaçal jurídico, eis que aos 45 do segundo tempo encontrou-se uma tábua de salvação capaz não só de aliviar consideravelmente as penas de catorze dos indiciados, entre os quais o capo José Dirceu, como desmontar o implacável cerco encetado pelo agora minoritário grupo de guardiões da moralidade de nosso depauperado sistema judiciário. Com danos irreparáveis para a imagem da Suprema Corte, que na visão do ministro Marco Aurélio Melo, em sua contundente entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo na edição do domingo (15/9) que precedeu o voto de desempate do colega Celso Melo, encontra-se à beira de um abismo exteriorizado pelas divergências e animosidades tão agudas entre seus membros.
Discurso de madre Tereza de Calcutá
Se houve excessos nas preocupações e formulações chamadas até de fundamentalistas, que infestaram a mídia nos dias que antecederam o voto de desempate do ministro Celso Mello, como classificar o sombrio quadro esboçado por um dos mais experientes e reconhecidamente íntegros, membros da Suprema Corte? Fantasioso? Melodramático? Descabido? Para a maioria das pessoas, com certeza procedente, alarmante, não só pelo retrocesso que representou o benefício dos embargos infringentes a réus de culpabilidade já imputada, mas principalmente pela clara demonstração de subserviência às hostes petistas e que tende a se tornar majoritário com o afastamento gradativo dos membros mais velhos, justamente os que fazem frente às mazelas e falcatruas emanadas do partido do governo.
Já para uns e outros, manifestações dessa natureza não passam de arroubos de retórica, vociferações desesperadas diante da eminência da derrota, e tome blablablá. Derrota de quem quer a todo custo ver a desgraça do PT, conjectura o veterano petista Ricardo Kotscho, um desses jornalistas de mão cheia cooptado pelo natimorto socialismo moreno, cujos fundamentos o próprio Lula se encarregou de desvirtuar, não só se apropriando das benesses do Plano Real, que tanto criticava, como fazendo vistas grossas aos mais variados escândalos, como o dos aloprados, de assessor de deputado petista apanhado com dólares na cueca, culminando com aquele que nas palavras do presidente do STF, Joaquim Barbosa, se constituiu no maior esquema de corrupção e desvio de dinheiro público da história do país, o chamado propinoduto, engendrado por figurões petistas que falta pouco para serem chamados de mártires.
Que nem toda a execração pública suscitada pelo mensalão pudesse servir de lição para a militância partidária cega e incondicional, era até previsível, dada a falta de escrúpulos que campeia na seara política. Mas que o comissariado voltasse à ativa com um discurso de madre Tereza de Calcutá, tentando, entre outras coisas, retratar a submissão da Suprema Corte como uma espécie de tomada da Bastilha, em desagravo aos réus e ao petismo em geral, haja sal de fruta para não embrulhar o estômago.
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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP