Depois meses de letargia política e midiática durante a campanha eleitoral, um único debate na TV entre Angela Merkel e seu adversário, o socialdemocrata Peer Steinbrück, trouxe o resultado ansiosamente esperado pela mídia alemã: uma campanha eleitoral de fato, que na reta final tomou característica hitchcockiana devido ao cenário montado pelos institutos de pesquisa, (quase) diariamente lançando no universo político alemão novos gráficos, novos números, novas maiorias matemáticas, tornando possível todo o tipo de constelação política para os quatro anos do próximo governo.
Somente no debate da TV Steinbrück conseguiu convencer os eleitores de que sua candidatura era para valer. Até então ele fora literalmente massacrado pela mídia de todos os segmentos por motivos de fúteis e micos graves. Quando, numa palestra, comentando sua postura na política fiscal, declarou exigir da Suíça a quebra do sigilo bancário, ameaçando “entrar na Suíça com a cavalaria”; ou quando polemizou ao declarar que o salário de chanceler na Alemanha não seria coerente, o que gerou aversão na opinião pública, já que seu partido pregava a justiça e a igualdade social como âncoras da campanha e da identidade do partido.
Oito anos de governo Merkel haviam mergulhado o país num estado de letargia e resignação do tipo “ruim com ela, muito pior sem ela”. Devido à crise do euro e também por falta de alternativas, os alemães se agarraram à figura da chanceler. Analistas políticos justificam essa postura com “a imensa necessidade dos alemães da sensação de segurança, de um porto seguro” – o que Merkel de fato já provou, em várias ocasiões, na maioria delas sem sequer considerar qualquer questionamento, seja de adversários políticos, seja da mídia.
Foco da campanha
O comitê da campanha de Merkel foi astuto e usou eficientemente o que os analistas denominam de “o bônus do cargo” (der Kanzlerbonus). Depois das eleições na região da Baviera, em 15/9, onde o até então parceiro-júnior de Merkel em Berlim, o partido Os Democratas Livres (FDP, na sigla em alemão) foi excluído do Parlamento local por não alcançar a marca necessária de 5% dos votos, os partidos em Berlim entraram em pânico. Por horas a fio, em programas com analistas políticos naquela noite de 15/9, tentavam explicações se a eleição na economicamente poderosa Baviera teria o efeito-dominó na política federal em Berlim. Merkel ficou receosa de, com isso, perder votos imprescindíveis para a formação da bancada mais forte do Parlamento.
Já na noite de domingo (15/9), os liberais – em visível desespero –, temendo a exclusão no cenário político federal em Berlim, iniciaram uma campanha do que a mídia chama de “campanha do voto emprestado”, iniciativa essa que já funcionara em eleições regionais anteriormente. O aspecto funcional da campanha baixou ainda mais a autoestima de eleitores do partido, que foram procurar abrigo, entre outros, no partido conservador contra a moeda do euro. O grupamento Alternativas para a Alemanha (sigla AfD em alemão), fundado há poucos meses, foi do zero a 4,7% dos votos e foram o grande suspense da noite de domingo, deixando o país colado às telas de TV, já que se o partido conseguisse a marca dos 5% dificultaria imensamente para Merkel a formação do governo, na busca desesperada do que ela chama de “uma maioria confortável”.
O complexo sistema eleitoral da democracia parlamentar exige dos eleitores grande capacidade estratégica. O primeiro voto é para o candidato local do bairro ou da região eleitoral X, que é eleito por voto direto. O segundo voto é dos partidos. O partido que obtiver maior número de votos incumbe o candidato à chanceler da formação do novo governo.
Ratificando a postura silenciosa de Merkel, no estilo de governo como durante toda a campanha eleitoral, o partido convidou a imprensa da área política para a inauguração do cartaz gigantesco colocado em frente à estação ferroviária central de Berlim, que exibia somente a postura das mãos de Merkel, suscitando tranquilidade e comedimento nas decisões a serem tomadas. Um vídeo do partido, lançado na última semana, mostra Angela Merkel na varanda da Chancelaria Federal “reinando” sobre Berlim e, em depoimento pessoal, pedindo o voto para seguir “na trilha do sucesso” e com aviso no final: “Os dois votos para o CDU” (ver aqui).
Notícia pela metade
A matéria do Jornal Nacional de sábado (21/9) sobre as eleições alemãs optou por chover no molhado. Primeiramente William Waack esclareceu as diferentes formas de pronunciar corretamente o nome da chanceler. Com imagens de Merkel no último comício antes das eleições, o repórter Roberto Kovalick afirmou: “Os alemães a chamam de ‘mutti’ ou ‘mamãe’. E é assim que ela se mostra no comício: uma mãe carinhosa, compreensiva, mas firme, segura”, disse.
A realidade é, de fato, bem outra: Merkel é chamada de “Mutti” de forma irônica, especialmente pelos adversários políticos e eleitores avessos ao estilo de governo da chanceler. A expressão “Mutti” é de cunho pejorativo, espelhando a necessidade dos alemães por um político de mão firme e que mostre competência no empreendimento de administrar a crise econômica do euro. “A mamãe vai resolver tudo!”, dizem os eleitores que se sentem superprotegidos pelo estilo de governo da política mais poderosa do mundo.
Até o tabloide Bild, simpatizante de Angela Merkel, não poupa as manchetes sempre que Merkel, como num jogo de xadrez, vai neutralizando seus adversários – principalmente os do próprio partido – que possam vir a roubar o show . Não foram poucas vezes que o tabloide de letras garrafais publicou “Merkel, eiskalt!” (“Merkel, implacável”, em tradução livre).
Ao adversário de Merkel, o socialdemocrata Peer Steinbrück, foi concedida somente uma frase seguida de imagens de turistas e pedestres ao redor do portão de Brandenburgo, além de uma turista perdida procurando algo dentro de sua bolsa.
O brasileiro Denis von Brasche, entrevistado na matéria, faz parte da cena Start-Up em Berlim, de jovens empresários que têm apoio estrutural do governo e de empresas privadas quando veem para a capital com ideias inovadoras no setor de tecnologia. A miniempresa de Denis desenvolve aplicativos para telefones celulares com mapas para turistas de vários estados europeus. Com esse perfil, não é difícil entender a decisão do brasileiro em votar no partido de Merkel, mas faltaram na matéria vozes da oposição e depoimento de eleitores na ruas, principalmente porque foram os indecisos que na hora das urnas causaram a saída dos liberais do Parlamento federal, pela primeira vez desde a criação do Estado alemão, em 1949.
A matéria do JN contou com dados estatísticos disponíveis na internet, mas ali faltou o diferencial desses próprios dados. Mesmo em se tratando de um bazar temático em formato ”blitz do jornal”, faltaram na matéria dados sobre as diferenças programáticas dos dois maiores partidos. Em vez disso, o repórter preferiu o foco de mão única: Merkel, Portal de Brandeburgo e um brasileiro para fazer o tema mais “interessante” (ver aqui).
Bem-vindo terremoto político
Na segunda-feira (23/9), depois da triunfal vitória de Angela Merkel com direito a muita festa na sede do partido na noite anterior, veio à tona a dimensão do terremoto político, mas também da feliz e competente tática dos eleitores, depois de uma campanha de todos os canais de TV apelando para o uso do voto como instrumento democrático. Dos 62,1 milhões de eleitores, 44 milhões (ou 70,08%) fizeram uso do voto, informou o jornal Augsburger Allgemeine (ver aqui).
As edições de segunda-feira foram recheada de depoimentos, de especulação de quais cabeças vão rolar, quem vai assumir a chefia desse ou daquele partido. Do outro lado, a vitoriosa Angela Merkel falou bem humorada à imprensa internacional. Um jornalista perguntou sobre se o figurino que Merkel usava nesse dia daria alguma pista sobre a constelação que formaria o novo governo. Merkel disse: “Hoje de manhã fiquei em frente ao meu armário de roupas e pensei: ‘Vermelho não pode (cor dos socialdemocratas), preto nem pensar’. Aí eu decidi pela cor mais neutra possível, um verde-cinza”, arrancando gargalhadas da plateia.
Um jornalista dinamarquês perguntou se pode contar com a continuidade da política europeia da chanceler. “A política europeia é de importância-chave no meu governo e ela não mudará”. Com perguntas de jornalistas da Croácia, Dinamarca, Itália e Irlanda, Merkel deixou mais uma vez claro que ela própria é quem decide o destino do velho continente, agora com um respaldo histórico dos eleitores alemães, que por pouco (faltaram 5 cadeiras no Parlamento) não à presentearam com a maioria absoluta.
No discurso do domingo (22) à noite) na sede do Partido Socialdemocrata, Steinbrück, que foi responsável pelo segundo pior resultado na história de 150 anos do partido, não se fez de rogado: “O SPD não vai sair correndo no estilo sangria desatada. A bola está no campo de Merkel. Agora é ela que tem que correr atrás de uma maioria para governar. Não haverá automatismo devido à situação matemática. Precisa haver consenso programático”.
Na coletiva de segunda-feira pela manhã, Merkel descartou a possibilidade de coalizão com os Verdes e deu a dica que já teria se comunicado pelo telefone com o chefe dos socialdemocratas, Sigmar Gabriel.
O resultado das eleições espelha claramente o desejo dos eleitores, que queriam Merkel como chanceler, mas estavam fartos das brigas e picuinhas com o parceiro-júnior, os liberais do FDP. Estes, por sua vez, serão o assunto principal da mídia nas próximas semanas, incluindo todos os programas de sátira de política do país, entre eles Toll! da rede pública ZDF (ver aqui).
******
Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988