Quando eu ouvia aquele pai de santo do Chico Anysio dirigir-se a quem o consultava na forma ‘Zifio’ (‘Zifiu’ é uma variação com alçamento da vogal átona final), ocorria-me, é claro, que ‘fio’ era a forma popular de ‘filho’ (filho > fiyo > fio; ver ‘fiyarada’). E nada me ocorria a respeito do início, ‘zi’, cujo sentido me escapava totalmente.
Nunca me veio à cabeça juntar essa forma às que ocorrem em uma piada escolar que conheço desde a adolescência: – Me dê quatro palavras começadas com ‘z’, cobra a professora. E o aluno (desses que poderiam estar na Escolinha do Professor Raimundo): – Zóio, zoreia, zovido, zovaco.
Pois agora consigo não só juntar os dois casos, como disponho de uma explicação para eles. Um artigo de Laura Alvarez – ‘Saravá zifiu! A integração do prefixo zi em afro-variedades do português’, que sairá proximamente na revista do Departamento de Linguística da Unicamp, Cadernos de Estudos Linguísticos (o papel de editor me dá acesso aos artigos no prelo, e divulgo este com licença da autora) – revela que ‘zi’ é provavelmente um prefixo oriundo de línguas africanas. É a tese do artigo, baseada em registros diversos (que não cito aqui, mas que o leitor poderá confirmar), relativamente numerosos.
Há três meses, dei notícia nesta coluna de outras possíveis influências de línguas africanas em aspectos da sintaxe do português do Brasil, formas menos marcadas do que esta, hoje estreitamente relacionada a descendentes de africanos ou a populações rurais.
Cito a seguir teses e dados do referido artigo. No que diz respeito a suas origens, trata-se de um marcador de classe nominal comum na maioria das línguas do grupo Bantu. Ocorre principalmente como prefixo de plural para substantivos que designam animais, e diversos objetos inanimados (todos os substantivos possuem um prefixo que indica a classe nominal a que pertence; são mais de vinte). Um exemplo é:
Saravá Zifio… qui Zambi ti abençôi, muleca!… cumu vai vançucê? (zifio < filho).
Marca emblemática
Nos dados disponíveis, diz Alvarez, a partícula ‘z’/zi/ji’ precede tanto substantivos como verbos e adjetivos em posições variadas. É frequente na fala dos pretos-velhos e funciona como marca emblemática.
Vá lavá tua zipé (< teus pés)
P’ra levar todos zi mali / De suas zi fio, em sua gongá / (< os males; < seus filhos)
Corta, corta meus jisoldados (< meus soldados)
Vendo por dois zivintem (< dois vinténs)
jikabalu (< ji-kabalu do português cavalo)
Foi o filólogo português Leite de Vasconcelos (1858-1941), segundo a autora, quem mencionou tanto a evolução interna do português europeu como a analogia com línguas cujos falantes tiveram contato com línguas africanas para explicar exemplos como ‘zôio’ (olho), ‘zotro’ (outro) ou ‘zêre’ (ele). O mesmo autor explica a aférese (“desapparecimento dos pluraes, como em zêre (= elles), etc.”).
Outro estudioso, descrevendo a “influência africana” no Brasil, argumenta que existem casos em que o ‘s’ do determinante se incorpora à vogal da palavra que o segue, fenômeno que ocorre também no crioulo francês de Trinidad (como a ocorrência ‘zoreies’, do francês ‘les oreilles’).
Trata-se de um caso de reinterpretação dos limites de morfemas, relativamente comum em casos de contato linguístico, que é um dos fatores essenciais na evolução do português brasileiro. Outro exemplo é ‘zom’, do francês ‘les hommes’ (os homens). Também os crioulos de base lexical portuguesa apresentam exemplos como este: ‘zálima’ (as almas) e ‘zonda’ (as ondas).
O fenômeno de aglutinação ou de reinterpretação dos limites de morfemas pode explicar, em parte, a prefixação do ‘z’ no caso de palavras portuguesas iniciadas por som vogal, que aparecem tanto nas representações como nos estudos linguísticos. O artigo de Laura Alvarez cita as fontes documentais:
zarreio (< arreio), zarreiá (< arreiar)
zóio, abri zôio cu esse gente (< olho), zoiá a prucissão passá (< olha)
zome (< homem), uma sala cheia de zome (< homens)
zano (< ano)
simbora – vou simbora, ir zimbora (< ir-se embora; vou-me embora)
zotro, di zotro, zótro tava no parêja, zotru (< outro)
zinimica (< inimigo)
zôvo (< ovo)
Da mesma maneira, é possível explicar casos como ‘zicrito’ (< escrito), ‘zicora’ (< escola), se considerarmos o fenômeno da metátese (mudança de posição de sons) ou epêntese (inserção de um fonema ou sílaba no interior de uma palavra), como é o caso de ‘ziriviço’ (<serviço).
Como se vê, o fenômeno é mais comum do que os meus dados iniciais sugeriam. No entanto, penso que não é da mesma ordem a grafia ‘a zelite’, que, a meu ver, é apenas uma forma equivocada que certa pseudo-elite brasileira escolheu para grafar a forma popular ‘as elite’, pronunciada ‘azelite’ (silabicamente, a-ze-li-te). Aliás, a mesma que escreve “di menor”…
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas