Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O projeto de educação e os seus interesses

Vamos ser claros? As Organizações Globo têm muito interesse no governo Eduardo Paes. A postura conservadora e constrangedoramente oscilante dos programas de notícia e jornais ligados a esse grupo em relação às manifestações que tomam o país desde junho já foi suficientemente comentada. Mas o risco que os veículos das Organizações Globo aceitaram correr após a criminosa ação dos governos do município e do estado do Rio de Janeiro contra os professores e a população que os apoiava, destoando de todos os outros jornais e programas de notícias, merece uma atenção especial.

Poderíamos começar pelo exemplo mais simples. No domingo, 29 de setembro, a edição do dia seguinte à violenta ação da Polícia Militar que expulsou os professores que ocupavam a Câmara Municipal trazia um caderno especial do “O Globo projetos de marketing” sobre a prefeitura do Rio de Janeiro. Com a chamada “Rio em transformação”, o caderno de oito páginas apresentava um conjunto de informações “apuradas” pela empresa Link Comunicação Integrada sobre as melhorias e os projetos futuros (de melhoria, claro) da cidade maravilhosa sob a gestão de Eduardo Paes. Como a edição de domingo do Globo vai às ruas ainda no sábado, na parte jornalística (não publicitária) do jornal não havia sequer uma linha sobre a violência da noite anterior.

Mas, no caso da greve dos professores, suponho que exista algo mais importante do que a venda de publicidade. De acordo com a avaliação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), amparado por vários outros pesquisadores e militantes da área de educação, o Plano de Carreira, Cargos e Salários proposto pela prefeitura não é recusado pela categoria apenas por ser desfavorável economicamente. Partindo de uma pauta corporativa, como não poderia deixar de ser em se tratando de um sindicato, a luta dos professores do Rio tem ido além dela, propondo uma discussão sobre a qualidade e a concepção de educação que têm orientado as políticas públicas – e essa é mais uma das razões da adesão e simpatia do conjunto da população à causa. Ocorre que o projeto de educação da prefeitura do Rio incorpora, entre outras coisas, a lógica e a prestação de serviços – paga, diga-se de passagem – do setor privado. E as Organizações Globo têm ganhado muito com isso.

Interesse empresariais

Prova de que a pauta não é apenas corporativa é o destaque que o movimento tem dado à questão da chamada polivalência, um dos itens do Plano segundo o qual um mesmo professor pode dar aula de mais de uma disciplina. Alterada por emendas votadas pela Câmara, essa prática teria, segundo o próprio Globo, ficado “restrita a projetos experimentais e em áreas comuns: um professor de história, geografia ou português dá aulas conhecidas como humanidades”. É preciso checar o teor do texto final, após as emendas, mas vale destacar que projetos “experimentais” como esses que agora são formalizados num plano de carreiras já são desenvolvidos no município do Rio, contando com a parceria do Instituto Ayrton Senna, a metodologia e o material didático produzido pela Fundação Roberto Marinho (FRM) – aquela mesma que pertence às Organizações Globo. Desde 2010, um programa chamado Autonomia Carioca utiliza o telecurso para “promover a aceleração de estudos e corrigir a defasagem idade-série de alunos entre 14 e 18 anos dos 7º e 8º anos do ensino fundamental”, como explica o site da FRM.

Como descrevi em “Educação pública, lógica privada“, hoje, o programa é voltado para alunos repetentes, que são destacados do seu grupo de origem e reunidos em uma única turma, com funcionamento diferente do resto da escola. Os alunos estudam com um material específico, composto de livros e vídeos produzidos pela Fundação Roberto Marinho, com um professor que, devidamente “treinado”, apenas aplica a metodologia, podendo “responder” por todas as disciplinas. Esse programa, hoje, é usado para “acelerar” a aprendizagem dos alunos considerados “atrasados”. O material mágico, que permite que um único professor dê aula de todas as disciplinas, é vendido para a secretaria municipal de educação. Como instituição sem fins lucrativos que é, a Fundação Roberto Marinho não vende o material – apenas indica as três editoras autorizadas a comercializá-lo – mas tampouco disponibiliza os livros para consulta ou download no seu site, por exemplo. Utilizado não só no Rio de Janeiro mas em vários outros municípios e legitimado pelo Ministério da Educação, o telecurso foi criado para a educação de jovens e adultos, como explica o seu próprio site, mas tem sido adotado na educação de crianças. Além de mobilizar um importante mercado editorial, em que empresas lucrativas retroalimentam a “boa ação” das instituições sem fins lucrativos, essas práticas substituem o professor, trazendo outras referências para a sala de aula. Como opina o professor Roberto Leher, da Faculdade de Educação da UFRJ, na reportagem já citada: “O objetivo de fundo é que as escolas públicas recebam um pouco do espírito capitalista.” Não se trata de um projeto ou uma instituição: o que está em jogo é o esforço de se abrir a porteira para uma política de educação que interessa diretamente a grandes grupos empresariais reunidos no movimento Todos pela Educação, do qual as Organizações Globo fazem parte.

Até as ruas perderem a paciência

A entrevista que o prefeito Eduardo Paes deu ao RJTV sobre o assunto foi amplamente utilizada pelos telejornais da Globo para desconstruir as reclamações do Sepe. Numa edição no mínimo questionável, em que aparecia primeiro a crítica da representante do Sepe e depois, como palavra final, sem ‘tréplica’, a resposta do prefeito, a emissora permitiu que os telespectadores entendessem que a preocupação do sindicato com essa questão era equivocada, já que, segundo Paes, só os professores que quisessem adeririam ao esquema da polivalência. Reduzido a uma queixa corporativa, de modo que ninguém teve a ideia de perguntar o que isso significa para a qualidade da educação que o aluno está recebendo, o problema parecia resolvido.

O jornalistas esqueceram foi que, semanas antes, o mesmo prefeito, em entrevista ao jornalista Ricardo Boechat, na rádio Band News, se disse surpreso quando foi perguntado sobre a situação de um professor de geografia que tinha que dar aulas também de história e português, e respondeu que era “inadequado” um professor dar aula de outra disciplina que não a sua. É no mínimo curioso que, tão pouco tempo depois de descobrir, estupefato, que uma prática como essa acontecia na rede, o prefeito a tenha incorporado, formalmente, como item do plano de carreiras proposto para os professores. Mas os jornalistas da Globo, tão profissionais e experientes, não perceberam tamanha incoerência. E o que é pior: não são manipuladores, são maus profissionais, estrelas televisivas disfarçadas de jornalista.

Outra entrevista pingue-pongue com o prefeito, agora com o projeto já aprovado, foi publicada no jornal O Globo do dia 2 de outubro. Um dia após a violência física da polícia sobre os manifestantes e a violência política do prefeito e seus vereadores na votação autoritária de um plano que a categoria rejeitava e sobre o qual não foi consultada, a edição impressa e online chegou a ser intrigante. O Sepe-RJ não teve coluna nem entrevista pingue-pongue, mas ganhou um espaço importante, numa matéria que ‘denunciava’ que parte de seus dirigentes tem vinculação com o PSOL e o PSTU e, por isso, a greve seria liderada por esses partidos.

Para compensar, num esforço de neutralizar as críticas, promover o seu compromisso com a informação e se disfarçar de Mídia Ninja, a Globo divulgou imagens exclusivas de um policial forjando uma cena em que um manifestante portava um morteiro. Denúncia feita, respira-se aliviado e dorme-se tranquilo com o bom jornalismo investigativo: um policial, bode expiatório de um lado, como os Black blocs têm sido do outro, é condenado em nome dos governos do estado e do município. E a violência, física e política, fica sendo resultado do mau comportamento individual de sujeitos descontrolados. Vida que segue. Pelo menos até o próximo protesto. Ou até as ruas perderem a paciência.

******

Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em serviço social