Pode procurar; não há mais ponto e vírgula. Ele sumiu, como as reticências, fila jururu de três pontinhos que prolongavam uma impressão ambígua e induziam a leitora a concluí-la, ainda que o escritor soubesse muito bem aonde queria levá-la… Desapareceu junto com o ponto de exclamação, dedo em riste ameaçador que ninguém mais aponta!
O ponto e vírgula, o de exclamação e as reticências, no entanto, configuram a linguagem oral, são a sua música – a pontuação marca pausas, inflexões, ênfases, acelera ou retarda a elocução. Agora é hora de soprar a trombeta de outro sinal gráfico, a serpente que se contrai e se concentra, toma impulso, dá um bote e indaga à leitora: por que a pontuação mudou? Tenho uma hipótese, responde ela.
O ponto e vírgula sumiu primeiro aqui, na imprensa. Ao almejar um público amplo e de educação desnivelada, o jornal privilegiou a comunicação rápida do imediato – e parou de empregá-lo. Isso não se deu por ignorância da norma que orienta o seu uso. À parte as exceções que são o néctar dos gramáticos, a regra é singela: o ponto e vírgula sinaliza uma pausa menor que a do ponto final e maior do que a da vírgula. A sua abolição emudeceu um compasso, em proveito do rumor contínuo do resfolegante trator que nivela as complicações da vida real.
A fúria veloz e desatenta da vida de hoje
Nas revistas, cujo tempo de fruição é mais dilatado que o do jornal diário, o ponto e vírgula veio também a sucumbir à generalização do desuso; restando as vírgulas. Numa delas, The New Yorker, o seu fundador, Harold Ross, era um fanático da virgulação. Fosse brasileiro, deveria se chamar Virgulino. Ele achava que as vírgulas são holofotes, esclarecem o escrito. A ponto de botar uma na frase “Depois do jantar, os homens foram para a sala de estar”. Um leitor achou a interrupção abusiva e, em alto e bom som, estrilou: por que a vírgula?! Foi-lhe dito que a vírgula dava tempo aos homens de afastar a cadeira e ficar de pé depois do jantar.
A New Yorker ainda virgula adoidada; vem até de ponto e vírgula. Mas nada que se equipare à redação entrecortada, aos solavancos dos anos de Harold Ross, no início do século passado, quando as vírgulas esclareciam, mas truncavam, reportagens; artigos; resenhas; perfis; peças de humor, até.
A rarefação dos sinais de pontuação não foi apenas aquilo que, black bloc das antigas, Eike Batista chamaria de concessão da imprensa ao mercado. A rarefação diz o que ocorreu na sociedade: se não há mais jantares onde os homens se retiram para fumar charuto e beber brandy numa sala aconchegante, a elegante vírgula de Ross perde sentido. Em tempos de lufa-lufa e restaurante a quilo, onde ninguém se ergue da cadeira com polidez, a vírgula inútil enfeita a petulância – os bons modos de quem teve berço – do redator, que a põe no texto como um cravo no smoking.
Imprensa é isso mesmo: redução. Não cabe, numa notícia de pé de página, remontar à vida pregressa e à situação material do motorista e do pedestre de um atropelamento no Aterro. A brutalidade da pontuação sem matizes corresponde à fúria veloz e desatenta da vida de hoje. Pau nele, no ponto e vírgula, como treinamento para os desastres da realidade.
Sinais de pontuação desenham a mudez conformada
Com a arte, a figura muda. Ela existe para captar o confuso e expressar o inexprimível, a trombada entre o indivíduo e a sociedade. É o que buscam três romances nacionais recentes, A maçã envenenada, de Michel Laub; Noites de alface, de Vanessa Barbara; e O drible, de Sérgio Rodrigues. No conteúdo, o que os une é a violência contemporânea: massacre e suicídios no livro de Laub; assassinato e ocultação de cadáver no de Barbara; suicídio e incriminação no de Rodrigues. Na forma, nenhum deles emprega ponto e vírgula e parênteses (concha que encapsula outro sentido), o que leva a serpente a atacar de novo: por quê?
Sendo a pergunta absurda, não há resposta. Note-se, contudo, que o modernismo limpou a prosa artística do trololó beletrista, e os três autores a ele se filiam. E que eles, por serem jornalistas, talvez tenham levado para a ficção algo do reducionismo da imprensa. Como não há utilitarismo em arte, o uso nulo ou amiúde do ponto e vírgula não conduz a obras-primas – nem ao socialismo, como gostaria Eike Batista…
O que vale no romance é a expressão do autor. Desde que ele seja um artista, una conteúdo e forma num todo inextricável. Senão, poderá apelar para emoticons como os do título. Essas carinhas fofas – sirenes do kitsch, uivos da breguice – não dão música à emoção. Elas difundem máscaras em série, com as quais o indivíduo automático se anula na cidade onde todos têm o mesmo rosto. Já os sinais de pontuação, em vez de harmonizar da linguagem escrita, são cílios e ciscos que desenham a mudez conformada.
Ou dão uma piscada.
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Mario Sergio Conti é jornalista