Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Samuel Fuller nu e cru

Samuel Fuller virou cineasta porque cobriu durante anos aquela considerada a escola de vida numa Redação, a seção de Polícia. Foi repórter policial, mas antes vendeu jornal nas ruas de Nova York e se orgulhava de ser “pequeno jornaleiro”. Acompanhava reportagens de polícia por mero gosto até convencer o editor de que sabia mais sobre um assassinato do que o jornal pretendia publicar. Escreveu a matéria, virou jornalista e deu o furo. Foi o primeiro a registrar, em 1929, a morte da atriz da Broadway Jeanne Eagles, ex-dançarina do Ziegfeld Follies, causada por um coquetel de álcool e heroína. Fuller tinha 17 anos, era seu primeiro emprego.

O documentário que sua única filha fez sobre o pai quase avô (ela nasceu quando Fuller tinha 63 anos), A Fuller Life, é uma raridade que tem 99% de chances de não entrar em circuito comercial. O doc está na 37ª Mostra de Internacional de Cinema de São Paulo (de 18 a 30/10). Raridade para cinéfilos, acima de tudo para jornalistas.

Numa entrevista concedida a esta repórter, em 1988, durante as filmagens em Lisboa de A Street of No Return (Uma rua sem volta), Fuller, então com 76 anos, orgulhava-se da sua origem profissional. “Jornalismo e cinema estão ligados. Godard também foi jornalista no começo da carreira e o meu grande sonho até hoje, mais do que fazer cinema ou escrever um livro, é ter meu próprio jornal.”

O primeiro emprego de Fuller foi de contínuo no New York Journal. “Lá virei repórter de polícia. Era aquele mesmo jornal do Cidadão Kane, onde Orson Welles, ao entrar na redação, diz ‘meu nome é Charles Forster Kane’. Um jornal de W. R. Hearst, que só empregava gente boa. John Houston sentava-se perto de mim e sua mãe [Rhea Gore] era a melhor repórter de polícia do pedaço.”

Falsários e vigaristas

O documentário é imperdível para quem sabe que o mestre de filmes B era um diretor classe A. Sua vida é resgatada da autobiografia The Third Face, lida por cineastas, colegas e admiradores como Wim Wenders. E remontada quadro a quadro nas sequências filmadas por ele mesmo no dia a dia, nas imagens colhidas com a filmadora 16 mm durante a Segunda Guerra Mundial, quando se alistou como soldado, nos registros próprios de quem escolheu sair da cobertura de jornal para viver a realidade e voltar a registrá-la em livros, artigos e celuloide como escritor, diretor, ator e roteirista.

Um desses filmes é um tributo e aula de jornalismo, Park Row (A dama de preto, 1952), que o cineasta pagou do próprio bolso. O jornalismo era personagem constante dos seus filmes, como em Shock Corridor (Paixões que alucinam, 1963) sobre um jornalista que se passa por louco e sofre alucinações para investigar os abusos cometidos num hospício.

Fuller é filho de imigrantes judeus russos que trocaram o sobrenome Rabinovitch ao chegar à América. Depois da “escola” que foi o jornalismo e a guerra, ele dirigiu 26 filmes, mas logo o primeiro, em 1949, lhe garantiu sucesso, dinheiro e fama. Foi Matei Jesse James,sobre Bob Ford, integrante do bando de Jesse James, que assassinou pelas costas o melhor amigo e mentor. Mas a traição motivada pela alta recompensa e perdão para seus crimes perseguiram Ford o resto da vida e lhe custou a rejeição da namorada e da sociedade.

Se foi ruim para a carreira fazer sucesso logo no primeiro filme? Fuller respondeu em 1988, na mesma entrevista que fiz. “Tanto quanto ganhar 1 milhão de dólares logo no primeiro bilhete de loteria que você compra. Pela história de Jesse James ganhei 104 mil dólares quando estava habituado a receber 75 dólares por script.”

Quem gosta de assepsia deve fugir da crueza e do tom noir de Fuller e se fartar de westerns americanos. “Eu?”, o cineasta respondeu à minha pergunta, “não dou um centavo pelos quase 200 westerns machos em que John Wayne trabalhou. Eu só gostava dos falsários, dos vigaristas, do real, mas os estúdios da época se interessavam apenas por Lassie, a cadelinha que enchia os bolsos de Louis B. Mayer. Até emplacar o script de Jesse James.”

Nada de fora

A paixão de Fuller sempre foi por gente que “não tinha medo de aventura”. “Falo principalmente de Spielberg e Wenders. Essa gente não tem medo de cinema.”

Martin Scorsese sempre disse que a melhor coisa de sua infância foi ter assistido ao cinema de Fuller; Jean-Luc Goddad se declarou aluno de Fuller em imagem e som, dedicou Made in USA(1966) a ele e a Nocholas Ray, e filmou Fuller em Pierrot Le Fou(1965). Como Wenders filmou Fuller em O Amigo Americano (1977) e O Estado das Coisas1982).

O revertério veio com Cão Branco (1982), quando uma aspirante a atriz em Hollywood encontra um pastor alemão albino na rua e o leva para casa – até descobrir que o cão havia sido treinado para matar negros. O filme acabou com a carreira de Fuller em Hollywood, acusado de racista a ponto de forçá-lo a deixar os Estados Unidos e morar na França.

O documentário não deixa nada de fora, inclusive as sequências dos filmes de Fuller que raramente passam no cinema. E são uma bela chance de revê-los porque não haverá mais filmes de Fuller, morto em Hollywood em outubro de 1997, aos 85 anos.

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Norma Couri é jornalista