Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma guerra sem heróis

O ano não acabou, mas é como se já tivesse sido concluído. Envelheceu antes do tempo. E não parece ter deixado saudades. Nem ainda foram contabilizados o último trimestre e a imprensa brasileira nunca perdeu tantos jornalistas e radialistas derrubados por balas assassinas como em 2013, segundo relatório divulgado esta semana pela Abert. Um crescimento de 166 % em relação ao ano anterior. Essa realidade sobressai porque coincide justamente com o período do coroamento das liberdades de informação e expressão e quando a expansão da criminalidade no Brasil ultrapassa todos os seus limites anteriores.

Leon Tolstoi (1828-1910, principal romance, Guerra e Paz) e Ernest Hemingway (1899-1961, principal romance, Adeus às Armas) estão entre os poucos jornalistas consagrados pela literatura mundial pela cobertura de guerras declaradas. O que o Brasil assiste hoje é uma verdadeira guerra interna não declarada, mas cujas informações já dominam mais de 40 % do noticiário diário quando não 100% como é o caso dos programas jornalísticos policiais da TV.

Da segunda metade dos anos 1950 até antes do golpe militar de 1964, que determinou feroz censura à imprensa e aos meios de expressão de um modo geral, os índices de criminalidade também exibiam números estarrecedores. Mas eles não eram acompanhados pela presença e expansão das drogas numa escala a colocar o Brasil, como hoje, com um mercado de consumo determinante no horizonte internacional.

Envelhecimento precoce

Essa realidade se tornou mais chocante com o acesso às drogas como noya e crack por jovens favelados em todo o país, o público-alvo do Programa Bolsa Família. É notória a fragilidade do instrumental de segurança federal contra as drogas e o cerco da polícia ao tráfico parece uma piada de mau gosto, limitando-se a preocupação do governo a exercitar uma tímida política de apoio ao tratamento de dependentes químicos. De um pequeno estado – Alagoas – onde acontece de tudo, na mesma semana, em setembro de 2013,quando se debatia, paradoxalmente, a descriminalização da maconha a Polícia Federal apreendia quase 1 milhão de toneladas da erva de uma plantação bem cultivada no chamado Triângulo das Bermudas alagoano (Inhapi-Canapi-Mata Grande).

A decisão da maioria do STF em transferir para o futuro o destino paradigmático de um grupo de políticos delinquentes do mensalão frustrou as esperanças de segmentos organizados da sociedade ao alimentar a impunidade, dando-lhe uma longevidade inesperada. Essa sensação parece dominar grande parte das pessoas e tem sido tema obrigatório nas conversas em toda parte – no intervalo hora do cafezinho, na rua, no ponto de ônibus, nas igrejas, nas escolas. As tensões políticas e os debates ocorridos no Brasil de junho para cá, se de um lado, lançaram o país ao encontro da sua realidade política, de outro arremeteram alguns segmentos sociais a uma reflexão escapista, a uma busca mais permanente pelo infinito.

Ao produzir seu clássico O Zero e o Infinito, onde retrata a vida de um prisioneiro político na cadeia em Moscou, cuja ânsia de comunicação acaba criando o paradigmático Código Moss, o austríaco Arthur Koestler (1905-83), dá o primeiro passo para a ultrapassagem de limites humanos coroados anos depois pela internet. Esse envelhecimemento precoce do ano no Brasil tem sido fortalecido pela antecipação da programação de natal pelas TVs fechadas em cuja programação, desde junho, são exibidos filmes com estórias natalinas.

PM associa-se ao banditismo

O Brasil – e o planeta – está com uma multidão de pessoas diplomadas na área de comunicação fora do mercado de trabalho. São comuns duas explicações: 1-o afunilamento mercadológico com o fechamento de jornais impressos; 2- a nova mídia virtual não conseguiu dar o salto quantitativo estimado. Ao lado disso, há um fator pouco discutido e que, talvez, a própria universidade não tenha estudado: o fato de que essa profissão é típica de pessoas idealistas. E para se desenvolver idealismos não é necessário estar militando no jornalismo.

Alguns teóricos sociológico-midiáticos buscam explicações para o recuo das mobilizações populares e os protestos de rua e os avanços hoje dos quebra-quebras dos mascarados no Rio e São Paulo, quase sempre sem atentar para o massacre sofrido pelos movimentos sociais que tentam se reerguer no país desde a Constituinte de 1988.

Recente nota pública da Abong-Associação Brasileira das ONGs de repúdio ao governo Dilma Rousseff historia o esforço dos movimentos sociais brasileiros para neutralizar a criminalização das suas ações por uma corrente política-filosófica que esconde detrás do patrimonialismo as mazelas do legalismo favorável às elites e contra a população. As contradições geradas por essa orientação levaram a própria PM, em vários estados, a se associar ao banditismo para tirar proveito das brechas do próprio sistema protetor do patrimônio privado.

Realidade roubou a adolescência

É capenga a sociedade que precisa de heróis. Quando isso ocorre, nota-se a falência do sistema social que deveria alimentar valores mais altos.

O nivelamento por baixo produzido pelo STF mergulhou a sociedade no obscurantismo mental, onde floresce um pântano de valores em que roubar é mais importante do que trabalhar, ser honesto é pobreza de espírito e o potencial para a prática de crimes é o passaporte para o prestígio social. O retrocesso ético transcendeu várias gerações e pegou em cheio pais de 370 mil viciados em crack, cuja recuperação é impossível a não ser a um custo prejudicial a educação e saúde da população como um todo.

Se a realidade é o pesadelo do dia-a-dia, sonhar se converteu num ponto localizável no infinito. Porque a realidade é tão cruel a ponto de ter roubado da adolescência brasileira a única chance que ela teria de avistar algum futuro pela frente.

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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor