Lia o artigo do jornalista Luciano Martins Costa sobre a relativização da barbárie e pensava na menção ao livro Vigiar e Punir, de Michel Focault. O articulista narra caso inusitado de um iraniano condenado à morte, mas que sobreviveu, para espanto de todos, depois de onze horas dependurado sob os nós de uma forca [leia aqui].
Não havendo execução eficaz, embora se possa imaginar o suplício do condenado, o texto discorre e transmigra, oportunamente, para a hipótese fática do modelo de justiça ocidental: (i) porque o governo iraniano declarou que o supliciado não mais irá encontrar a execução capital – no ocidente, pensaríamos que, se um criminoso fora condenado, a lei deveria ser cumprida e haveria algo errado; (ii) porque a nítida barbárie destinada à pena de um criminoso iraniano, sobre o lastro de outro regime e organização de valores sociais – no ocidente, haveria manifestações contrárias nas redes sociais e na mídia acerca do evento; e, finalmente, (iii) porque não haveria liberdade de expressão em uma sociedade dominada majoritariamente por um Estado religioso e conservador – no ocidente, as ações humanitárias esgotar-se-iam no próprio sistema.
A relativização da barbárie, como salientada, não impede que exista nos sistemas ocidentais, ditos “humanitários”, o suplício de um cidadão condenado. Não se falaria, aqui, da pena capital de alguns estados norte-americanos. O que seria um suplício, em se tratando de pena criminal? Existiria suplício ao condenado nos países ocidentais (países que contam com relativa liberdade de expressão da mídia e das redes sociais)?
Uma cerimônia que ataca o poder do Estado
A resposta é sim. Como disse Foucault, o suplício produziria, em tese, uma quantidade de sofrimento correspondente à ofensa perpetrada. Nota-se que o-sofrimento seria, aqui, o encarceramento – e o que acontece dentro das prisões nacionais, cujos fatos não conhecemos, se nos apresentariam como brindes quantitativamente “oficiosos”.
Outro suplício que ocorre, ordinariamente, diria respeito ao modo (ou método) com o qual se consegue uma confissão. O trabalho do judiciário e, por incrível que nos pareça, a própria eficácia do corpo policial seriam julgados pela facilidade por meio da qual apresenta um cidadão suspeito como culpado. Sem a confissão, o cidadão não poderia ser condenado na ausência de indícios circunstanciais, presunções de fato e da lei, obrigando ao órgão julgador à pesquisa adicional para o caso. E, para simplificar a operação, você leitor saberia, ou deveria saber que a confissão, na maioria dos casos, viria entregue de bandeja ao magistrado. O interrogatório que se faz é um suplicio a um suposto condenado no nosso sistema “humanitário”. Mas, isso há quando haveria o interrogatório: às vezes, nem esse suplício há para um investigado. Neste particular, como disse Foucault, tratar-se-ia do suplício causado pelo judiciário, um ritual político.
A suposta delinquência penal nos protestos populares
Finalmente: o suplício demanda que o supliciado seja um agente criminal que ataque a soberania do poder executivo – tratar-se-ia de uma cerimônia que ataca o poder do próprio Estado, na visão do governante de plantão. Usar-se-ia de uma função jurídico-política para tentar enaltecer e reconstituir a soberania estatal (exemplo: não se poderia fazer protesto popular com máscara no Rio de Janeiro). Novamente, seria oportuno citar Foucault: a medida do corpo executivo para seu aparato policialesco deve manifestar o poder do soberano sobre aqueles que lhe reduziu à impotência, ao desgoverno, à ausência de legitimidade para governar, à pecha de governante perdido e fracassado?
Não haveria frase mais batida e que poderia irritar até um monge tibetano, mas, desta feita, formulada de forma diferente: não se trata de indagar “Onde estaria o Amarildo?”, mas sim, como enunciado acima, “o que teriam feito, em meu, seu e nosso nome, com o Amarildo?”
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Eduardo Ribeiro Toledo é advogado e escritor