Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Democracia brasileira não respeita nem Prêmio Esso

Aprenda a fazer uma deliciosa nega maluca com a receita da dona Benta. Em um recipiente coloque três xícaras de farinha de trigo, duas xícaras de açúcar, meia xícara de óleo, uma xícara de chocolate em pó, três ovos, uma pitada de sal e bata na batedeira. Acrescente em seguida uma xícara de água fervente e misture até a massa ficar homogênea. Desligue a batedeira e coloque uma colher de fermento misturando delicadamente. Despeje a massa em uma vasilha própria e leve ao microondas por oito minutos. Em seguida, faça a cobertura a gosto e sirva sua deliciosa nega maluca! Caso abetume, é porque a receita não se trata de bolo, e sim, de censura prévia.

Ruy Mesquita, ex-patrono do jornalismo de O Estado de S. Paulo, inventou a substituição dos centímetros censurados no jornal por receitas culinárias ou previsões do tempo durante a ditadura militar. Mas isso à época da ditadura militar. O engraçado é que mais de trinta anos depois, o fascismo midiático, notícias ainda recebem tratamento de massa de bolo. E isso no mesmo jornalão.

O que acontece é que O Estado de S. Paulo denunciou em junho de 2009 a existência de mais de trezentos atos secretos no Senado – acusações que envolviam diretamente o presidente da Casa, José Sarney, e sobretudo seu filho, Fernando Sarney. Uma reportagemà la Prêmio Esso. Mas uma decisão judicial boicotou o jornal que desde então não pode publicar mais um “ai” a respeito do “príncipe”. A boçalidade era de que se tratava de uma investigação policial e o jornal não deveria se meter.

Ministro vs. Estadão

Do boi barrica – título da investigação – só restaram as chifradas na imprensa que o denunciou. E que chifradas! Nem o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) abriu os olhos o suficiente para enxergar o tamanho do estrago feito pelo boi.

E ainda querem falar de liberdade de imprensa ou expressão. Engulam, pois, este caso. Se não bastasse a ditadura militar ter limitado e boicotado o jornalão, a volta da era dita democrática segue cometendo as mesmas gafes. E pobres dos jornalistas que ainda precisam ouvir do senhor ministro Joaquim Barbosa que vivemos num país “sem censura prévia”. Vivemos, ministro? E o Estadão não está sob censura prévia? “É, acho que a situação é essa, sim. Censura prévia é ruim, não é permitido, é ilegal, é inconstitucional. Agora, infelizmente em toda a sociedade há aqueles que desviam, né, cometem erros, e o que vem acontecendo no Brasil é isso. Esses casos pontuais de censura aqui e ali são desvios, erros cometidos inadvertidamente por alguns juízes”, balbuciou Barbosa a esta pergunta durante o 8º Congresso de Jornalismo Investigativo no Rio de Janeiro. Pelo visto os senhores do colarinho branco até que prefeririam receitas de bolo no lugar de denúncias.

Falando em Barbosa, ainda me soa estranho o nome do presidente da Casa estar envolvido em outros dois casos com jornalistas que, ironias à parte, são empregados do mesmo grupo censurado. Em setembro, a jornalista Cláudia Trevisan cobria a visita do presidente do STF à Universidade Yale, quando foi presa por… por… e a resposta fica vaga. Um caso inescrupuloso que levanta o debate do interesse público e de como os “representantes do povo”, quase aclamados como justiceiros, não fazem nada quando se deve ser feito. Apesar de tudo, a assessoria de Barbosa disse que ele não teve nada a ver com o caso e só ficou sabendo do incidente depois. Em síntese, teve-se um ministro brasileiro visitando uma universidade americana e uma jornalista brasileira boicotada de transmitir a pauta da visita. Do blábláblá, o evento era fechado para a imprensa e a jornalista não cumpriu a ordem de distanciamento.

Uma questão de liberdade

O outro caso é do ministro solicitando ao vice-presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, que demitisse sua secretária por ela ser casada com um jornalista que cobre o Legislativo. Ironias à parte, o repórter é Felipe Recondo, também do Estadão, e foi chamado de “palhaço” pelo presidente do STF em março deste ano. “Vá chafurdar no lixo”, disse Barbosa ao jornalista após o Estadão solicitar via lei de Acesso à Informação dados sobre despesas com recursos públicos de ministros da Corte. Mas para Barbosa, o que importa é que um caso como a esposa de Recondo trabalhar dentro da Corte “seria inimaginável nos Estados Unidos (EUA)”.

No modus operandi dos EUA, o país figura, de acordo com o ranking da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), o 32º lugar entre os estados nacionais com maior liberdade de imprensa, e é considerado livre no jornalismo de internet conforme divulgado pelo Freedom House. Já o Brasil, na mesma pesquisa, é o país “parcialmente livre”, ocupando a 108.ª posição – segundo o RSF. É possível comparar com polos tão distintos?

Quem sabe o ministro tivesse razão e realmente nos EUA as coisas seriam diferentes? A começar pelo O Estado de S. Paulo que continuaria publicando e denunciando as mazelas do Senado. Infelizmente, uma utopia.

Enquanto isso, na terra sem lei da imprensa brasileira, a (não) democracia esfacela o Jornalismo. E falo do jornalismo com J maiúsculo, aquele que coloca a boiada para correr. Desde que nenhum boiadeiro munido de AIs-5 se intrometa no caminho e substitua a ração potente por bolinhos de oito minutos.

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Isadora Stentzler é jornalista