Uma vez uma repórter me entrevistou para uma matéria, que não sei nem se saiu, sobre a esquisitíssima variedade de gente, à qual pertenço, que não tem celular. Acho que ela foi embora sem se conformar. Os meninos do futuro próximo, claro, receberão implantes de chips de celulares e terão seus cérebros conectados ao wi-fi municipal, serviço obrigatório para qualquer prefeitura. Diante desta perspectiva, é normal que, num mundo em que, cada vez mais, as pessoas se tornam apêndices de seus iPhones, tablets, óculos Google e similares, a moça estranhe um maluco que persiste em não ter celular. Pelo menos eu lhe devia fornecer alguma explicação ideológica ou psicológica, tais como pertencer a um aguerrido grupo de budistas ativistas e ter delírio de perseguição ou fobia por qualquer novidade eletrônica.
Que eu saiba, não é nada disso. Não tenho raiva nenhuma de aparelhos eletrônicos, trabalho no computador até com certa proficiência e fui um dos primeiros escritores brasileiros a usar um processador de texto, no tempo em que nem internet havia e um HD de um (sic) megabyte, chamado de “winchester”, era considerado uma extravagância de milionários americanos e talvez mentira de viajantes. De fato, nunca fui muito de falar ao telefone e pode ser que tenha uns dois traumas de infância. O telefone da família, quando moramos em Aracaju, ficava no corredor de nosso casarão, ocupando bastante espaço. O aparelho era uma grande caixa preta com manivela e, embaixo, duas pilhas dessas de lanterna, só que enormes. Eu achava que aquilo ia explodir e preferia evitar usar o telefone. Minha mãe, que era baiana (em Salvador, nessa época, já havia telefones automáticos de quatro números!), adorava.
– Alô! Meia-três-um! – cantarolava ela, atendendo a uma chamada e dando o nosso número.
– Ih, lá vai mamãe – pensava eu, aguardando a explosão.
É possível, mas, de uns tempos para cá, olhando em torno, me convenci de que a razão para eu não querer celular é que, até hoje, nunca precisei, mas tenho certeza de que, no dia em que tiver um, não vou conseguir passar sem ele dentro de poucos dias. Daí para ingressar sem retorno num mundo – este, sim, muito louco – a que me recuso a pertencer, o mundo dos viciados e dependentes dos celulares, é um passo a que não quero arriscar-me. Acho que a gente nem nota mais as maluquices que esse negócio gerou, desde a obsessão em conhecer cada um dos milhares de aplicativos oferecidos e em ver sempre que mais está sendo oferecido e que perspectivas se abrem nesse cipoal infinito, à consolidação do que parece se delinear no futuro, a Era da Promiscuidade. Acabou-se a intimidade, até o recato e o pudor são valores do passado, e o celular deixa isto muito visível, se não for um dos responsáveis principais.
Documentarismo peralta
No tempo do telefone fixo, procurava-se uma certa discrição, quando, mesmo em casa, se conversava sobre um assunto íntimo ou sigiloso. Mas o celular acabou com isso e hoje, em elevadores, salas de espera, filas, ônibus, corredores de avião ou onde mais se aglomere gente, partilhamos de segredos e confidências antes mantidos a sete chaves. Isso, no Brasil, é ainda agravado por conexões péssimas, que obrigam os interlocutores a gritar. Como na história (mudo os nomes, claro) do Maurício, amante de uma jovem senhora sentada quase a meu lado, na sala de espera do oculista. Maurício, um patente sem-vergonha, que não somente falhara em sua promessa de largar a mulher, Aninha, para viver com Eunice (a jovem amante), como paquerara com sucesso a irmã mais nova de Eunice, a Clarice, aquela traíra de carinha inocente, o que tinha de lourinha, tinha de falsa, procurando o homem da irmã até no escritório. A reprovação da conduta solerte de Maurício e a solidariedade geral podiam ser sentidas quase palpavelmente, pelo menos em todo o público feminino da plateia. Entre os homens, creio ter percebido em alguns um traçozinho de inveja do Maurício. Daqui a pouco, esse tipo de coisa se estende a todo convívio social e a promiscuidade passa a ser normal, ou até mesmo esperada.
À mesa dos botecos, por vezes quase sem fôlego, alguns tripulam simultaneamente dois ou três celulares, ou um celular e um tablet. Um problemazinho encontrado reflete-se em suas feições, subitamente crispadas e ansiosas, quase em pânico. Franzem o rosto, mordem os lábios, movimentam freneticamente os dedos pela tela e, afinal, uma luz ilumina seu rosto, fim do tormento: ele está em linha, afinal, não fora do ar, como temia. Outro dia, num aeroporto, uma moça, por sinal muito bonitinha, sentou-se à minha frente e passou a falar no celular, sem levar o aparelho ao ouvido, mas conversando como se estivesse diante de uma pessoa. Falava, falava e, quando desligava, imediatamente fazia nova ligação. Nas poucas vezes em que não conseguiu completar alguma e teve que ficar sem falar por um minuto ou dois, dava para ver sua angústia, parecia que ia perder o fôlego ou se atirar lá embaixo, devia ser insuportável, coitadinha.
E tudo o que se faz agora é fotografado, gravado ou filmado. Não bastam as câmeras de segurança que daqui a pouco estarão em toda parte. Os celulares não perdoam nada e, mesmo à distância, podem documentar o que alguém pense que está fazendo sem que ninguém veja ou saiba. Por certas conversas que eu tenho ouvido, também já fazem parte do equipamento sexual auxiliar – ou mesmo propulsor, quem sabe – de alguns. Antigamente, fazer certas fotos ou, pior ainda, filmes, era difícil, tinha-se que usar uma Polaroid ou coisa assim. Hoje a alta definição está ao alcance de todos e esse documentarismo peralta entrou em voga, é uma curtição especial. Claro, vai tudo parar na internet, é isso mesmo, é o futuro. No futuro, só existirá a internet.
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João Ubaldo Ribeiro é jornalista e escritor