Que jornalista é um “serumano” analfabeto, mentiroso, que pouco lê e que pouca profundidade tem sobre os assuntos os quais se mete a relatar, até os índios isolados da Amazônia já sabem e replicam.
Poucas profissões são tão esculhambadas e apanham tanto em praça pública. Em breve, a ciência deverá anunciar o nome da fobia de repórteres e de seus microfones, seus gravadores e seus bloquinhos selvagens, impiedosos.
Por isso tudo, demorei para botar fé em uma mensagem que recebi dias atrás de uma leitora que deveria ser recebida no jornal com tapete vermelho, colar havaiano e brisa importada do Mediterrâneo: Leonor.
Mesmo vivendo dramas diversos da velhice, a danada não abre mão de ler, repercutir, palpitar e sugerir rumos para meus textos e para outros colunistas de matutinos.
Os meus garranchos, ela comentou a todos dos últimos três anos. Certa vez, depois de um mal súbito, desapareceu por uns dias. Foi parar na UTI com uma complicação respiratória.
Fiquei bege quando a minha caixa postal chegou uma mensagem de Boris, o marido. Ele teve o cabimento de me explicar a “ausência” da mulher por aqueles dias e pedir, juro, pedir, em nome dela, desculpas.
Lamparina acesa
Leonor me faz sentir menos o peso da vigarice do meu labor –da malandragem de se enfiar em tragédias humanas e relatá-las– de que tanto se fala.
Ela me permite uma diástole mais tranquila diante da não necessidade de um diploma para botar na parede e para “invadir” a vida alheia em busca de utilidade social, de dinheiro público roubado.
Ah, sim, a mensagem. Era assim:
“Hoje, dia do meu aniversário de 72 anos, fui ao oftalmologista, porque nem o jornal consigo ler mais direito. Você sabe que o jornal, nos últimos tempos, tornou-se minha razão de viver.
Troco ideias com você, com a Eliane, com o Hélio e Alexandre Schwartsman, José Simão, Suzana Singer, acho que só…
Todos sempre me respondem nem que seja com um agradecimento, mas fico feliz por estar pondo minha cabeça para funcionar. Sinto-me útil. Mas o médico disse que terei de operar o olho esquerdo, o que me restou. Não dá mais para aumentar o grau dos óculos. A catarata não me deixa mais enxergar.
Estou com muito medo, Jairo. Se eu perder a visão totalmente como aconteceu com o meu pai, não sei como vou ficar. Como irei me comunicar com vocês?”
As palavras me fizeram imaginar que, quiçá, os fabricantes de parágrafos, os pedreiros de períodos do dia a dia podem ter lá o seu valor. Informação ainda pode nutrir inteligência e pode ser importante, de fato, para uma ou duas pessoas.
Vou torcer para que Leonor passe bem longe da cegueira, embora a carga de conceitos dramáticos que rodeiem essa condição seja absolutamente arraigada de interpretações ligeiras.
Cegos leem jornal buscando sentidos para a comunicação: despertar emoção, somar conhecimento, transportar para lugares desconhecidos com segurança e atenção.
Mas o desespero de Leonor serve, a sua revelia, para acender a lamparina que ajuda a resgatar do submundo de frases rápidas, debochadas, sem nexo e sem crédito das atuais redes de gente algum sentido para gostar de quem produz informação.
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Jairo Marques é colunista da Folha da S.Paulo