Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem papel para cartas

“Oi, Papai Noel! Eu estudo na classe 02 do Guará I. Meu nome é Aline eu tenho oito anos e meu sonho é ganhar um patinete” (…)

“Querido Papai Noel, eu sou Julia, tenho 10 anos, moro com os meus pais e meus irmãos eu sou uma menina estudiosa, gosto muito de estudar. Mas eu tenho um sonho que nunca se realizou que é ganhar um patins. Eu nunca tive um patins” (…)

No mês de dezembro, 1 milhão de cartas como essas chegam aos Correios, em todo o Brasil. São meninos e meninas que cursam até a quinta série do ensino fundamental e moram em áreas de vulnerabilidade social. Letrinhas caprichadas e desenhos coloridos ajudam a descrever os pedidos: bicicletas, patins, bonecas, jogos, computadores… Para atender a um desses desejos, basta escolher uma das cartas, em qualquer agência, comprar o presente e entregá-lo no mesmo lugar. É o Papai Noel dos Correios, um programa social criado há 24 anos pelos funcionários.

A iniciativa, incorporada às ações sociais da empresa, mostra que, em plena era da comunicação digital e instantânea, a carta escrita em papel preserva espaços de uso próprio entre as muitas coisas ainda insubstituíveis no mundo. No caso, é um instrumento de validação do imaginário infantil. Poderá ser também, contudo, na sua materialidade peculiar, meio e mensagem ao mesmo tempo, se o remetente pretender solenizar o sentido de seu envio. Ou será apenas um aviso de cobrança. Não morreu, portanto. Dificilmente, porém, escapará à concorrência, que é crescente, das formas eletrônicas de comunicação. Hoje, Papai Noel, personagem assumido por pais de verdade, pode ser alcançado por e-mail. E é pela internet também que o bom velhinho, instalado em programas de computador, conversa com os pequenos enquanto anota seus pedidos.

No mundo real, os Correios, como é mais conhecida a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que completa 350 anos em 2013, vivem um dilema. Como manter lucrativa, e crescendo, uma empresa que nasceu com a finalidade de distribuir correspondências se elas estão desaparecendo?

O presidente dos Correios, o economista Wagner Pinheiro, diz que a resposta a esse desafio está na tecnologia e na criatividade. Só assim a empresa tem condições de equilibrar ações para atender cidadãos em regiões quase inacessíveis, as entregas imediatas e outros serviços inaugurados recentemente. “É incrível o processo de modernização e de reinvenção que uma empresa como esta precisa ter sempre. Nós e todas as instituições semelhantes no mundo. Imagine que começamos entregando correspondência para a Coroa.”

Em papel

Enquanto para os executivos dos correios, no mundo inteiro, a substituição das cartas por outros meios de comunicação é um desafio que mexe com o bolso, para historiadores e pesquisadores o fim das correspondências pode significar, em casos extremos, o fim da chance de reconstituir e contar épocas passadas. Ao longo de milênios, cartas trocadas entre governantes, entre os que descobriram e desbravaram novas terras e mares, entre amigos, amantes, poderosos ou cidadãos comuns são um dos mais fiéis documentos a retratar épocas, costumes, estilos literários – enfim, a própria história.

“As cartas são testemunhos de valor incalculável”, diz a professora, escritora e crítica literária Walnice Nogueira Galvão, estudiosa de uma das mais notáveis correspondências da história brasileira, as cartas de Euclides da Cunha, e organizadora, junto com a professora Nadia Battella Gotlib, do livro “Prezado Senhor, Prezada Senhora – Estudos Sobre Cartas”. Do papel em que foi escrita ao tipo de caneta ou lápis utilizado, à cor da tinta, a caligrafia e outros detalhes, uma carta pode revelar numa simples folhinha de papel muito mais do que estudos formais.

As cartas pessoais com segredos, alegrias, amores impossíveis e dores da alma exercem um óbvio fascínio nos leitores e estudiosos. Ler as cartas de Napoleão Bonaparte, apaixonado por Josefina, por exemplo, é um consolo para aqueles que acreditam que só os fracos podem deixar-se arrebatar pelos sentimentos. Napoleão escrevia à amada ainda enquanto nos campos de batalha.

“Não passo um dia sem te desejar, nem uma noite sem te apertar nos meus braços; não tomo uma chávena de chá sem amaldiçoar a glória e a ambição que me mantêm afastado da vida da minha vida”, escreveu o imperador em 1796. Em outra das correspondências, logo depois de um desentendimento com a futura mulher, mostra sua tristeza e pede desculpas nas linhas de letra tortuosa, riscos e correções. “Envio a você três beijos – um no coração, um em sua boca e um em seus olhos.” O documento foi vendido pela casa de Leilões Christie’s, em Londres, por £ 276 mil em 2007.

O Napoleão apaixonado vivia num mundo que chegaria ao seu primeiro bilhão de habitantes em 1804. Correspondências circulavam apenas por meios físicos – cavalos, inclusive. Iriam passar-se 34 anos até que, em 1838, Samuel Morse fizesse a primeira demonstração pública de seu telégrafo elétrico – que hoje é peça de museu num planeta com mais de 7 bilhões de habitantes e quase 3 bilhões de internautas. Enquanto as cartas perdem clientela, o e-mail não para de ganhar adeptos: somente neste ano, até quarta-feira, cerca de 63 trilhões de mensagens haviam sido emitidas no mundo – 75% por usuários individuais e o restante, por empresas –, segundo acompanhamento feito pelo Radicati Group, empresa americana de pesquisa do mercado de tecnologia. Naquele dia, as mensagens passavam de 137 bilhões. As contas de correio eletrônico, que eram 3,3 bilhões em 2012, deverão superar os 4,3 bilhões no fim de 2016.

Menos cartas, menos carteiros. A tendência parece inexorável. Se um dia a humanidade puser de lado de uma vez por todas o papel de carta, terá desaparecido o mensageiro que, ainda hoje, pode ser o portador de razões de felicidade ou trazer a mais dolorosa notícia e que se tornou tão importante, a ponto de ter garantido papel no cinema e na música. Em “Mensagem”, de Cícero Nunes e Aldo Cabral, composta em 1930 e gravada por Isaurinha Garcia, a letra relata o medo do destinatário ao receber uma carta: “Quando o carteiro chegou e meu nome gritou (…) Porque na incerteza eu meditava e dizia: será de alegria? Será de tristeza?” Em “Mr. Postman”, consagrada pelos Beatles, o tema é a ansiedade de uma namorada por notícias do namorado distante na guerra. “Mr. Postman, look and see/If there’s a letter in your bag for me”, diz o refrão.

Mas o momento fatal, para o carteiro, ainda parece ainda longe. Ele agora é parte relevante em sistemas de comunicação que conjugam meios eletrônicos e físicos.

Quando todos no mundo falam entre si o tempo inteiro sem a ajuda de ninguém, a estratégia dos Correios, no Brasil, afirma Pinheiro, é mirar na comunicação digital para tentar tirar, dela, uma fatia. Surgiu o Correio Digital, ou “correio híbrido” – uma parceria com empresas privadas ou públicas que precisam enviar um grande volume de correspondências. É o caso da Polícia Rodoviária Federal ou do Sistema Único de Saúde (SUS), que distribui 350 mil cartas por mês. “Eles nos mandam o arquivo digital. Imprimimos, transformamos em cartas em várias partes do país, e remetemos. Aproveitamos a tecnologia para favorecer nosso serviço. Precisamos ser uma empresa tecnológica que pode transformar tudo em meio físico, em papel, dialogando com os avanços e com as necessidades da população brasileira e mundial.”

“Milênios, quiçá”

Outro exemplo é o telegrama. Em 2012, foram entregues mais de 20 milhões de mensagens. Agora, porém, ninguém precisa ir até uma agência dos Correios ou telefonar, para ditar o texto em que se procurava cortar palavras e expressões para diminuir o custo. O telegrama pode ser mandado por e-mail na página dos Correios. E chegará ao destinatário impresso, igualzinho ao que sempre foi.

Torcedor do Guarani, casado e pai de dois filhos, Pinheiro presidiu a Petros – o fundo de pensão da Petrobras – no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. É um homem dos quadros petistas, mas, na escolha da presidente Dilma Rousseff, pesou o fato de ser um técnico, contar com a confiança do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e, principalmente, de ser visto como o executivo que teria condições de adequar os Correios ao século XXI. O primeiro passo previsto já estava combinado no governo: a edição de medida provisória que autorizou a empresa a participar acionariamente de outras, a autorização para explorar serviços postais eletrônicos, financeiros e de logística integrada. O lucro líquido, em 2012, foi de R$ 1,044 bilhão, cerca de 18% superior ao do ano anterior, de R$ 882,7 milhões.

Os Correios investem também para se tranformar em uma empresa de logística integrada, basicamente o serviço de entregas, que já representa 40% do faturamento. São mais de 35 milhões de objetos por dia, remetidos para todo o Brasil. Pelos três centros de tratamento internacional – em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba – passam milhares de volumes por dia. São livros, computadores, roupas, sapatos, brinquedos. “Temos uma estrada, um caminho enorme a trilhar ainda nesse setor”, diz Pinheiro.

Esse caminho fica claro na pesquisa anual feita pela consultoria de gestão Accenture. Os Correios caíram três posições em relação a períodos anteriores e aparecem em 10º lugar – o último – no estudo “Achieving High Performance in the Postal Industry, 2013” (Alcançando alto desempenho em serviço postal) que, desde 2006, indica os nomes que mais se destacam e as tendências do setor. As três primeiras colocadas são a Singapore Post (Cingapura), United Parcel Service – UPS (Estados Unidos) e a Austria Post. Em comum, da primeira à última da lista, as empresas enfrentam o fato de que têm sido forçadas a se diversificar para diminuir a perda de 50 bilhões no volume de correspondências, registrado nos últimos três anos.

Os Correios se beneficiaram com iniciativas que diversificaram o portfólio e a oferta de serviços. A estatal, uma das maiores do país, emprega 120 mil pessoas, opera um Banco Postal (com 6.500 pontos, em parceria com o Banco do Brasil), e se prepara para entrar no setor de seguros para pessoas de baixa renda.

Por enquanto, segundo a consultoria, os Correios brasileiros ainda dependem muito das cartas para crescer e se desenvolver e isso vai na contramão do que acontece nas concorrentes. No ano passado, quase 50% do faturamento de R$ 16,5 bilhões – mais 13,09% do que em 2011 – resultou do chamado correio tradicional: as cartas. “Não são aquelas cartas que gostamos de receber, com notícias. Essas são raras ou viraram e-mails. São aquelas outras, as contas de luz, telefone, o cartão de crédito… só dor de cabeça”, brinca Pinheiro.

O problema, segundo analistas, é que os Correios detêm o monopólio desse tipo de serviço, a correspondência simples. E isso, além de impedir a livre concorrência no setor, ainda deixa a empresa muito dependente de um produto que segue uma trajetória de extinção.

O mineiro Jorge Silva Araújo, 33 anos, carteiro em Ituiutaba – cidade de Triângulo Mineiro – sabe muito bem o que é esperar por uma carta. Certo dia, enquanto pedalava sua bicicleta pelas ruas do município carregando a bolsa no ombro, pensou nos 39 idosos do Asilo Bezerra de Menezes que olhavam todos os dias para ele. “Imaginei que ninguém falava com eles e que, mesmo eu, só levava contas”, recorda Araújo. Foi aí que teve a ideia de escrever aos idosos. Quase todos os dias, ao voltar para a casa onde mora com a filha de três anos e a mulher que espera uma outra menina para março, o carteiro passa algum tempo escrevendo cartas que serão entregues aos idosos.

“Conto histórias, às vezes falo de coisas que me aconteceram no dia. Eles adoram”, disse Araújo, em entrevista por telefone. E que histórias são essas? Algumas são novidades, outras são aquele clássico da vida do carteiro: “Você acredita que até hoje não inventaram uma forma de a gente fugir dos cachorros? Têm uns que parecem saber a hora que o carteiro vai passar. É só despontar na porta e lá está o bicho, mostrando os dentes. Hora de correr.”

Há lugares onde nem os carteiros aparecem, ainda são só as cartas as portadoras de notícias. Mas, em vez de serem enviadas aos inatingíveis destinatários, vão para uma emissora de rádio, a Nacional da Amazônia. No programa “Ponto de Encontro”, todos os dias, das 10 às 12h, a jornalista Sula Sevillis lê, há 29 anos, as cartas dos ouvintes. “Quando o programa começou, percebemos que havia uma demanda enorme por esses recados. Naquela época e ainda hoje, somos em muitos lugares a única forma de comunicação entre as moradores.”

E até nos lugares onde há algum telefone, às vezes a comunicação é difícil. “Recorro às minhas famigeradas cartinhas”, disse a jornalista Bruna Pellegrini, em carta escrita a uma amiga, durante uma viagem que fez pela região Norte, para justificar a falta de notícias.

O Ponto de Encontro chegou a receber mais de 2 mil cartas por mês. Muitas delas sobre desencontros. “Principalmente na época áurea do garimpo, de Serra Pelada, muitos iam embora, em busca da fortuna, e a família não recebia mais notícias. Essas pessoas, quase sempre mulheres, escreviam para que lêssemos as cartas e tentássemos encontrar os maridos, pais ou filhos”, conta Sula.

Pela mesa da jornalista passam as mais prosaicas notícias: “Quero avisar minha mãe que cheguei da viagem e estou bem”, diz o trecho de uma delas. “Quero avisar o Pedro [nome fictício] que seu filho nasceu”, diz o trecho de outra. Sula, quando as lê, já sabe que, rapidinho, aparecerá a resposta.

Certamente, a necessidade de tanta rapidez é uma das principais causas da morte das cartas. Falta tempo e disposição para esse tipo de mensagem, lamentam os estudiosos do assunto. Diferentemente do que disse Chico Buarque na canção “Futuros Amantes”, “o amor não tem pressa, ele pode esperar/ num fundo do armário/ na posta restante/ milênios, quiçá”. Tudo, hoje, tem muita pressa e, sendo assim, é provável que sobre pouco para os sábios tentarem decifrar “o eco de antigas palavras/fragmentos de cartas/mentiras, retratos/vestígios de uma civilização”.

***

Meu caro amigo Florestan,

Um era filho de empregada doméstica, analfabeta. Não tinha pai conhecido, morava na casa da família onde a mãe trabalhava em São Paulo. Nasceu em 1920. Foi batizado Florestan. Mas era chamado de Vicente. A patroa dos Fernandes achava que o nome era aristocrático, inapropriado para o menino que trabalhava na barbearia, engraxava sapatos nas ruas. O outro era filho de médico e de uma mineira de família tradicional. Nasceu no Rio em 1918. O nome e o sobrenome já revelavam a origem: Antonio Candido de Mello e Souza. Florestan concluiu os estudos no curso de “madureza” (uma espécie de supletivo da época). Antonio foi criado no interior de Minas, educado nas melhores escolas. Radicou-se na capital paulista e, em 1939, ingressou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). A mesma escola que, em 1941, receberia o jovem Florestan e onde nasceria, por meio de uma carta, a amizade e a afinidade intelectual entre dois dos maiores pensadores brasileiros do século XX: o crítico literário Antonio Candido e o sociólogo Florestan Fernandes.

“São Paulo, 4 de fevereiro de 1942.

Meu caro Antonio Candido:

Perdoe-me a intrometida intimidade, pois não nos conhecemos pessoalmente. Entretanto, ela se justifica por dois motivos: primeiro porque representamos a nova geração. Estamos no mesmo plano, dentro do tempo, apesar de você, neste caso, ser uma espécie de irmão mais velho. Ao representarmos o novo espírito de trabalho, encaramos tudo sob novos aspectos, mais objetiva e humanamente. Segundo, porque encarna um processo admirável e justo de crítica, que eu defendo e lamentava já não existir entre nós”.

A correspondência está guardada em São Carlos (SP), onde Florestan passou a maior parte da vida. No Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais da Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos há mais 13 mil volumes que pertenceram ao sociólogo. Há objetos pessoais, manuscritos, cadernetas, fotos, alguns móveis e o arquivo de fichas escritas à mão, indicando os livros em que elas se encontravam. O acervo é tão grande que a biblioteca criou o Fundo Florestan Fernandes para abrigá-lo e a bibliotecária Vera Lucia Coscia levou dez anos para organizá-lo. Numa sala, à qual se chega por uma rampa em caracol em cinco andares, os livros estão nas prateleiras do mesmo jeito que eram mantidos pelo professor em casa.

“É um material de pesquisa e reflexão fantástico”, diz a pró-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda, autora de “Florestan Fernandes – Mestre da Sociologia Moderna”. Apesar da agenda apertadíssima, ela diz que não conseguiria recusar um convite para falar sobre Florestan. Na Reitoria, começa a ler a primeira carta e já comenta: “A letra dele é inconfundível”.

Jovem pobre que trabalhava para se sustentar, Florestan era quase um ser de outro planeta, se comparado aos seus colegas da USP. “Meu pai era pobre, miserável e naquele lugar ninguém era assim”, recorda a filha e professora aposentada Heloisa Fernandes. A faculdade que ele cursava era um berço da elite de São Paulo. “Até parecia que vivíamos naquela detestável época das Academias Lusas, de elogio mútuo”, dizia, na mesma carta, o jovem estudante, elogiando o trabalho do colega Antonio Candido. A carta, acrescenta Maria Arminda, é mais do que uma evidência de que, apesar do claro sentimento de inferioridade em alguns trechos, Florestan se sentia absolutamente à vontade para conversar e fazer observações que outros teriam tido receio.

“Ele diz considerar Antonio Candido um irmão mais velho e faz muitos elogios à produção intelectual do colega. Mas observe que ele acaba questionando as críticas. Isso embora Antonio Candido já fosse Antonio Candido quando Florestan entrou na faculdade. Florestan se sentia aquém da faculdade de filosofia. Só que isso não fazia dele um subalterno nem tampouco um humilde”, observa.

De fato, Antonio Candido fizera sua estreia como crítico literário em 1941 na revista “Clima”, fundada por ele com – entre outros – o crítico de teatro Décio de Almeida Prado, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes e a ensaísta Gilda de Mello e Souza, com quem se casaria, teria três filhos e viveria por mais de 60 anos. A revista, que durou até 1944, era integrada basicamente por homens e ela a única mulher. “Ela era tratada como um rapaz”, contou Antonio Candido no discurso que fez na inauguração da biblioteca com o nome da mulher. A Gilda tampouco faltava berço. Era prima de Mario de Andrade e passara sua juventude na mesma casa do modernista – o famoso sobrado da rua Lopes Chaves. Da revista Antonio Candido sairia direto para a “Folha da Manhã”, hoje “Folha de S.Paulo”, na qual semanalmente escrevia nos chamados “rodapés”, sob o título “Notas de Crítica Literária”.

Talvez por já ser, como diz a professora Maria Arminda, “Antonio Candido”, o colega Florestan só recebeu a resposta dessa primeira carta um ano depois, escrita numa caligrafia de letras pequenas e uniformes:

“Rua Goiás, 89, 10 de março de 1943. O atraso com que respondo à sua carta nada significa, a não ser falta de tempo. Ela me causou um extraordinário prazer e eu muito lhe agradeço (…) Você há de ter percebido que os meus artigos – no caso em que os leio – obedecem a um como que plano e que debaixo de todos eles há um denominador comum, que eu hei de repicar até chatear meio mundo”.

“Tratos à bola”

Ainda jovem crítico, ao longo de quase três páginas, Antonio Candido é educadíssimo na resposta. Lamenta ter começado a escrever tão cedo e observa:

“Preferia ter ficado quieto mais algum tempo, consolidando ideias que só agora começam a se cristalizar. Se você puder, se não se vir obrigado a escrever por necessidade imediata – guarde uns anos de silêncio, ou de produção limitada. A culpa é do Brasil, onde tudo se improvisa. Nós, felizmente, tivemos a sorte de aproveitar a faculdade, onde em falta de outra coisa, ao menos um pouco de espírito crítico e de consciência nos é fornecido”.

As datas da correspondência revelam outro aspecto da relação entre ambos. Se Antonio Candido não tinha a menor pressa em estabelecer um diálogo com Florestan, a recíproca não era verdadeira. Uma semana depois de sua resposta, Florestan, que após encarar uma infância de privações dava valor incomensurável aos estudos, mandou a tréplica:

“A satisfação que me causou a sua carta você não calcula. Senti a mesma sensação que há alguns anos, ao compreender as perspectivas que a cultura abre aos seus afeiçoados. Ela me deu (a pouca cultura que tenho) uma predisposição, por assim dizer, para aprender o que há de verdadeiramente valioso e necessário (no sentido humano) nas grandes obras. Senti como que uma vertigem, ao compreender que um livro pode conter um universo, através desses sensuais sorvedores da vida que, cedo, nós aprendemos a amar no seu próprio espírito”.

Com pouco mais de 20 anos, Florestan identificara em Antonio Candido a perspectiva de uma vida mais rica, de aprendizado e de saber. “A carta é uma tentativa evidente de se aproximar do grupo de jovens intelectuais da filosofia que vinha adquirindo robustez e daria o tom e o caminho da sociologia nos anos seguintes”, explica Maria Arminda.

“Eu espero e me preparo porque pouco aprendi até agora, e quase que por mim mesmo. Não pude passar do segundo ano primário e tive sempre, desde os sete anos, que conciliar as necessidades do espírito com as da vida material. Dizem que o trabalho é uma boa escola e eu de fato adquiri nele quase toda a minha experiência. Mas entre experiência de vida imediata, a cultura, intelectualmente falando, e a racionalização dessa experiência, vai uma distância maior do que há entre o Himalaia e o Jaraguá. (…) Fiz a minha ‘cultura’ afoitamente e só pude estudar metodicamente aos 18 anos. Hoje, com quase vinte e três, percebo a dureza imposta pela posição social e lamento que me tenha reduzido a uma condição que eu não aspirava. Enfim, a minha vida não foi uma batalha perdida.”

Esse relato de Florestan, um surpreendente exercício de sinceridade, até hoje comove seus filhos. “Meu pai me contou que nos primeiros dois anos da faculdade ficava num canto. Ele tinha vergonha. Sentia-se marginalizado porque era pobre. Ele teve que provar que era talentoso e acho que Antonio Candido abriu as portas desse mundo para ele”, diz, emocionado, o jornalista Florestan Fernandes Junior.

O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, o mais famoso ex-aluno de Florestan e Antonio Candido, lembra-se dos tempos da faculdade com satisfação: “Quando eu entrei, em 49, os dois já eram assistentes. O primeiro a me dar aula foi o Florestan. Ele nos fazia ler Mannheim [sociólogo fortemente influenciado por Max Weber e Karl Marx] e eu não entendia nada. Era tudo tão complexo e difícil que pensei em desistir.” E compara: “Antonio Candido sempre foi melhor para ensinar. É um professor no sentido da palavra. Florestan fazia tudo com paixão, mas era mais difícil”.

Numa tarde quente, a tranquilidade e o frescor da sala de Fernando Henrique no instituto que leva seu nome, no centro de São Paulo, só é perturbada por um som de axé music que insiste em romper a barreira dos vidros. Ao abrir a porta à repórter do Valor, já avisa com simpatia: “Está ouvindo essa barulheira? É o ensaio para a comemoração do Dia da Consciência Negra. Vai ter show por aqui”. Ele não conhecia a correspondência entre seus dois amigos e professores. Ao olhar uma cópia dos papéis, comenta: “Como era bom quando a gente escrevia cartas, não é?”

Nos anos 40, quando novas ideias floresciam na faculdade, que ainda nem ficava na rua Maria Antônia, a vida dos alunos não era fácil. O curso funcionava onde foi a Escola Normal Caetano de Campos, na praça da República. Muitos professores, como Charles Morazé e Roger Bastide, vinham do exterior e a maior parte das aulas era ministrada em francês. “Era um ambiente estimulante. Era como entrar em um mundo completamente diferente do que conhecíamos”, conta Fernando Henrique, que, em 1949, era um adolescente de 17 anos. Os professores usavam um avental branco, como se fossem cientistas. “Foi uma época muito boa, muito feliz. Aquele mundo da filosofia era uma comunidade intelectual.”

A comunidade intelectual acabava por estender-se à vida pessoal. Florestan e Fernando Henrique, muitos anos depois, foram vizinhos. “Ele gostava de cozinhar. Fazia uma feijoada ótima e gostava também de uma cachaça.” Florestan, lembram os amigos, tinha uma capacidade sem fim de trabalho. “Era uma força intelectual e até física indescritível. Talvez porque durante um tempo ele trabalhava carregando tonéis”, diz o ex-presidente.

Ainda que não tão próximos geograficamente, Florestan Fernandes e Antonio Candido foram aumentando a intimidade com o correr dos anos. Em algum tempo, o jovem que se apresentara timidamente ao colega tinha começado a conquistar o respeito. Em 3 de fevereiro de 1946, já em tom familiar, Florestan comunica a Antonio Candido o nascimento de sua primeira filha, Heloisa: “Ela vai bem, é bonita, parece mais branca do que eu e já fez uma pequena revolução na família”. Na mesma carta, o sociólogo comenta com o colega sobre a pressão que vinha recebendo do professor Fernando de Azevedo (do qual eram assistentes) para que fosse feito um trabalho de reorganização dos cursos e diz que, por causa disso, vinha trabalhando “como negro”.

A resposta, dessa vez, não demorou. Poucos dias depois, Antonio Candido envia os parabéns pela chegada de Heloisa:

“Gostei de tua solidariedade, publicando uma senhorita em vez de um marmanjo. Você verá que as filhas são mais gratas ao coração dos pais, embora deem futuramente mais tratos à nossa bola e aos nossos ciúmes”.

Admiração e companheirismo

O lado bem-humorado e até machista do professor que mudaria a forma como a sociologia era tratada no Brasil – e viria a ser pai de mais três meninas e um menino – aparece na carta seguinte:

“Caro amigo Antonio Candido, (…) pelo visto paga a pena ter uma filha. Os pais – principalmente o pai – ficam todos anchos, recebendo parabéns daqui e abraços dali (…) É o meu caso, ninguém decepciona a gente: “oh! Que amorzinho! Chi! Que belezinha! (…) Eu preciso ter muitas mulheres nas costas para ter juízo. (…) O diabo é se vierem muitos filhos e todas filhas. As mulheres são todas uns anjos, mas produto ruim para colocar está aí. Um conhecido meu, homem cheio de métodos, está com oito encostadas (…) A mulher ainda não faz completamente sua vida, cá entre nós; é uma costela do homem, um ser em semidependência”.

Heloisa lembra-se de que o pai era duro com os filhos. Não por agressividade. Mas pelo anseio de que tivessem uma vida boa, tivessem cultura. “Sei que há um lado bem machista nessa conversa, mas acho que meu pai era fruto de sua época. Seria difícil que pensasse diferente. Mesmo assim, isso nunca nos impediu de estudar e de ter as mesmas oportunidades que um homem teria. Eu, por exemplo, quando comecei a ter interesse por literatura, tive todo o estímulo que se pode imaginar. Meu pai um dia me chamou, abriu a biblioteca e me disse: leia e consulte tudo o que você quiser. Comecei com Zola”, diz a professora.

Consultar os livros de Florestan é ainda hoje uma grata experiência. Um exemplar de “O Capital”, em espanhol, por exemplo, mostra as anotações e observações do sociólogo. “Ele anotava às margens dos livros e depois passava para fichas. Em cada uma indicava o livro, copiava o trecho que havia marcado e fazia os comentários que considerava necessários. Dessa maneira, quando precisava escrever algo, era só procurar as fichas. Era uma espécie de Google particular”, compara. Essas anotações também marcaram a memória de Fernando Henrique: “Era tudo em caneta roxa e ele guardava em uns gavetões no escritório que tinha em casa. Era a paixão dele pela vida intelectual, pelo rigor no conhecimento, pela liberdade. Florestan odiava a injustiça”.

Certamente por isso nunca se rendeu à ditadura. Indignado com o Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado na faculdade, Florestan escreveu ao tenente-coronel Bernardo Schomam. Em texto datilografado em azul, diz:

“Há quase 20 anos venho dando o melhor do meu esforço para ajudar a construir em São Paulo um núcleo de estudos universitários digno desse nome. (…) Por isso, foi com indisfarçável desencanto e com indignação que vi as escolas e os institutos da Universidade de São Paulo serem incluídos na rede de investigação sumária, de caráter ‘policial-militar’, que visa a apurar os antros de corrupção e os centros de agitação subversiva no seio dos serviços públicos mantidos pelo Governo Estadual. (…) Não somos um bando de malfeitores. Nem a ética universitária nos permitiria converter o ensino em fonte de pregação político-partidária. (…) Não existem dois caminhos na vida universitária e na investigação científica. A liberdade intelectual, a objetividade e o amor à verdade resumem os apanágios do universitário e do homem de ciência autênticos. Estamos permanentemente empenhados numa luta sem fim pelo aperfeiçoamento incessante da natureza humana, da civilização e da sociedade. (…) Não desertei e nem desertarei dessa luta, a única que confere à Universidade de São Paulo grandeza real, como agente de um processo histórico que tende a incluir o Brasil entre as nações democráticas de nossa era”.

De Paris, onde estava na época, Antonio Candido escreveu:

“A sua carta ao IPM, e o que seguiu, continua um marco histórico na resistência à opressão. (…) Creia na nossa admiração e na sincera estima com que o abraço”.

Da admiração ao companheirismo, a correspondência guardada na UFSCar registra não só palavras e ideias de dois grandes intelectuais. Mostra que, no dia em que ninguém mais usar cartas para contar o que pensa e o que vive, a história do passado será muito mais difícil de recuperar. (M.G.)

***

“O segredo de nossa amizade era o coleguismo”

O maior crítico literário do Brasil, o professor Antonio Candido de Mello e Souza, não gosta de dar entrevistas. Aos 95 anos, voz firme, memória sem vacilos, ele mesmo atende ao telefone de casa e vai logo explicando: “Conversa? Aqui em casa? Não vai dar. Estou me recuperando. É uma pequena cirurgia”. O dever de ofício nos obriga a insistir. Ele se rende ao ouvir que não precisará falar de política ou de atualidades. A conversa será sobre o amigo Florestan Fernandes. Mais especificamente sobre as cartas por meio das quais trocavam ideias e se conheceram, na década de 1940, antes de se encontrar pessoalmente.

“Você quer saber como eu conheci Florestan?”, pergunta. “Ele lia meus rodapés e começou a me escrever. Eu era crítico da ‘Folha da Manhã’, hoje é a ‘Folha de S.Paulo’. Naquele tempo o crítico fazia artigo toda semana. Ficava na parte de baixo do jornal, por isso chamávamos rodapé. O nome do meu era ‘Notas de Crítica Literária’. Um dia entrei na faculdade e vi um rapaz encostado numa parede, em pé, lendo um livro, ‘Uma Vida de Buda’. Olhei bem, cheguei perto e perguntei: ‘Você é o Florestan?’ Na mesma hora ele respondeu: ‘E você é o Antonio Candido’. Foi assim. E ficamos amigos. Até então só nos conhecíamos pelas cartas.”

Mas como é que numa faculdade, com tanta gente, o senhor olhou justamente para ele e suspeitou que fosse Florestan?

Antonio Candido – Não sei… Até hoje não sei como isso aconteceu. Acho que foi a intuição. Ele teve essa mesma intuição.

Como era a relação dos senhores nessa época?

A.C. – Eu era o primeiro-assistente do professor Fernando de Azevedo e Florestan logo se destacou na faculdade. Vagou o cargo de segundo-assistente e ele foi convidado para assumir esse lugar. Ele logo foi muito respeitado por todos. Outro dos nossos professores era Roger Bastide, que, depois, até convidou Florestan para ir à Europa.

E os senhores foram professores…

A.C. – Ele era um professor como poucos. Foi um mestre. Eu dou muita importância à obra de Florestan. Você sabe que ele, durante muito tempo, se preocupou muito com a teoria. Veja quando ele estudou e fez sua tese de doutorado com “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”. Não havia como estudar isso, pesquisando in loco, como fazíamos. Ele fez toda a tese lendo, pesquisou tudo o que havia sido escrito. Estudou por meio dos cronistas da época. Como viviam os tupinambás, o que faziam. Diziam na época que isso era impossível. Ele mostrou que não era. E fez um trabalho inacreditável. Fez um livro magistral. Mas, até então, ele só se preocupava com a teoria. E conversamos sobre isso. Era preciso pesquisar o presente. Assim começou a sociologia crítica, empenhada nos problemas sociais.

E os senhores ficaram amigos e as cartas continuaram?

A.C. – Naquela época era o normal. Muitas vezes um ia para um lado. O outro estava aqui. Mas nós fomos companheiros, lado a lado na cadeira de sociologia 2. Passamos horas e horas, dias e dias na mesma sala. Trocávamos ideias, discutíamos que nota dar aos alunos, o que fazer com a cadeira. Havia muita discussão sobre a educação, sobre a sociologia, sobre a teoria, a crítica. Junto com isso, passamos a conviver com nossas famílias, nossos filhos.

Muitos intelectuais acabam tendo diferenças que os afastam. Isso não chegou a acontecer com os senhores…

A.C. – Nunca. A senhora quer saber o segredo de nossa amizade? Era o coleguismo. A faculdade é a maior fonte de amizade que existe. Meus maiores amigos eram da faculdade. Minha mulher [Gilda de Mello e Souza] era de lá. Sou de uma geração que nasceu e viveu por causa da universidade. Não sei se todos entendem isso hoje. (M.G.)

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Monica Gugliano, para o Valor Econômico