Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saudades da ditadura

A Folha de S.Paulo e o Observatório da Imprensa noticiaram no sábado (14/12/2013) a morte do embaixador Manoel Pio Corrêa Jr. O mesmo fato, a mesma data, a mesma personagem, mas com abordagens completamente diferentes. 

Para a Folha, tratava-se da morte de um bom velhinho, que adorava viagens e livros, especialista na Revolução Francesa, poliglota. 

Para o Observatório, tratava-se da morte um colaborador ativo do regime militar, golpista e dedo-duro, espião da CIA, criador do CIEx, o serviço secreto do Itamaraty que vigiou Jango e Brizola, autor da denúncia que provocou a demissão do poeta e compositor Vinícius de Moraes etc.

A disparidade de abordagens é tal, que dispensa interpretações. 

Basta a leitura das duas matérias para que se possa constatar a que raias de descalabro chega a falsa imparcialidade da grande imprensa brasileira. Para que você tire suas próprias conclusões, segue, abaixo, a transcrição das duas matérias.

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>> Abaixo, a matéria da Folha de S.Paulo, assinada por Andressa Taffarel:

MANOEL PIO CORRÊA JR. (1918-2013)

O diplomata, as viagens e os livros

Andressa Taffarel

Ao lado da família, o carioca Manoel Pio Corrêa conheceu os cinco continentes ainda criança. Seu pai, um famoso botânico de mesmo nome, viajava o mundo como pesquisador do museu de história natural de Paris à procura de plantas desconhecidas.

Durante o toda a vida, Pio não deixou de cruzar continentes. Diplomata, viveu em vários países. Tinha um carinho especial por Argentina e México, mas seu coração era da França, para onde ia de duas a três vezes por ano.

Grande conhecedor da Revolução Francesa, era dono de cerca de 1.000 publicações só sobre o tema, em diferentes línguas –falava pelo menos seis, além do português.

Sua biblioteca particular, no entanto, era muito maior. Herdou centenas de livros de seu avô paterno, um livreiro espanhol, e do escritor brasileiro Graça Aranha, avô de sua mulher, Thereza Maria.

Também é autor de vários títulos, entre eles o de memórias “O Mundo em que Vivi”.

Ultraconservador, apoiou o golpe de 1964 e considerava Getúlio Vargas e Castelo Branco os melhores presidentes do Brasil. Colega de Alzira, filha de Getúlio, na Faculdade de Direito do RJ, trabalhou no gabinete do político.

Após se aposentar no serviço diplomático, no qual ficou de 1937 a 1969, presidiu as unidades brasileiras da Siemens e da American Express. Trabalhou ainda em outras empresas e prestou consultoria até pouco tempo atrás.

Sofria de uma doença degenerativa. Morreu na sexta (6), aos 95 anos. Deixa a viúva, com quem foi casado por 70 anos, e os filhos, Manuel e Luiz, também diplomata.

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>> E aqui está a matéria do Observatório da Imprensa, assinada por Luiz Cláudio Cunha

A dupla morte da caça e do caçador

Luiz Cláudio Cunha


O fio caprichoso da História cruzou na sexta-feira, 6 de dezembro, o destino final da caça e do caçador da ditadura militar brasileira. No mesmo dia em que o ex-presidente João Goulart era sepultado, pela segunda vez, em sua terra natal, São Borja (RS), morria no Rio de Janeiro, aos 95 anos, o diplomata Manoel Pio Correa Júnior, criador do serviço secreto do Itamaraty que vigiou Jango e os exilados brasileiros escorraçados do país no golpe de 1964.

Ninguém da grande ou da pequena imprensa cobriu as exéquias do velho embaixador, ao contrário da mídia nacional que há quase um mês acompanha a exumação, as honras de Estado e as homenagens a Jango, no Congresso Nacional e fora dele. A notícia quase oculta, justificadamente escondida da morte de Pio Correa foi dada pelo desconhecido Conselho Nacional de Oficiais R/2 (Reserva) do Brasil, que apresentava Pio Correa como diplomata e Capitão R/2 da Arma de Cavalaria. Mas foi como diplomata e perseguidor de comunistas na carreira diplomática que Pio Correa fez sucesso, tornou-se temido e acabou afamado. No seu livro de memórias, O mundo em que vivi (1999), onde não revela quase nada, Pio Correa se vangloria de seu papel de conspirador: “A vitória da Revolução de 31 de março de 1964 representou a coroação de minhas mais caras esperanças”. No pequeno necrológio de seus camaradas de ditadura, é lembrado que num de seus últimos livros, O Granadeiro Emparedado, de 2005, o diplomata critica “o descaso com que as Forças Armadas são tratadas no Brasil”.

Caça a diplomatas

Premiado pelo primeiro general da ditadura, Castelo Branco, com a embaixada em Montevidéu, começou lá, com o coronel Câmara Senna, adido militar da embaixada no Uruguai, a articular a obra mais terrível de sua carreira: a montagem do secreto Centro de Informações do Exterior (CIEx), formado inicialmente por uma rede de contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia, fazendeiros e comerciantes que fechavam o cerco sobre as atividades de João Goulart e Leonel Brizola, então exilados no país.

A bem sucedida experiência uruguaia o levou, como secretário executivo do chanceler Juracy Magalhães, a redigir e assinar a portaria ultrassecreta que criou o CIEx no governo Castelo Branco. Tão secreta que não constava da estrutura formal do Itamaraty.

A sua existência só foi confirmada em 2007, pela monumental série de reportagens produzida pelo repórter Cláudio Dantas Sequeira, doCorreio Braziliense, revelando a ação repressiva da primeira agência criada sob o amparo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de seu criador, o general Golbery do Couto e Silva. O repórter revelou que, no início, o secreto CIEx foi camuflado como Assessoria de Documentação de Política Exterior, ou simplesmente ADOC, com verba secreta e subordinado à Secretaria Geral de Relações Exteriores. Na primeira década, até 1975, funcionou dissimulado como seu criador na sala 410 do quarto andar do Anexo I do Palácio do Itamaraty, em Brasília. Desativado junto com a ditadura, o lugar hoje abriga a inofensiva Divisão de Promoção do Audiovisual.

Vasculhando 20 mil páginas de documentos com 8 mil informes escondidos nos arquivos do CIEx, o repórter Sequeira apurou que, dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, os nomes de 64 das vítimas estavam lá, nas pastas secretas de Pio Correa. Em seu livro de memórias, Por dentro da Companhia, o agente norte-americano Phillip Agee revela que Pio Correa era agente da estação da CIA em Montevidéu quando servia como embaixador no Uruguai. O braço direito de Pio Correa em Montevidéu e amigo fiel era o diplomata Marcos Henrique Camilo Côrtes, nomeado primeiro diretor-executivo do CIEx. No governo Costa e Silva, acompanhou Pio Correa na embaixada em Buenos Aires e, logo em seguida, foi enviado “em caráter especial” a Washington para estreitar os laços com o setor de inteligência da CIA. Como segundo homem do Itamaraty, no primeiro governo da ditadura, Pio Correa promoveu uma caça aos diplomatas que, em resumo, classificava como “pederastas, bêbados e vagabundos”. O poeta, compositor e diplomata Vinícius de Moraes foi perseguido por Pio Correa e aposentado em 1968 pelo AI-5.

Sem cobertura

No crepúsculo da ditadura, muitos arquivos do regime foram destruídos, mas o acervo do CIEx foi salvo pelo secretário-executivo que fez a transição da ditadura para a democracia, entre 1985 e 1990, embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, que recusou a ordem dos militares para limpar as gavetas.

Assim, salvou a obra funesta de Pio Correa, que morreu na sexta-feira (6/12), o mesmo dia em que Jango voltava à sepultura de São Borja. Caberá à História, agora, reservar o espaço devido a quem foi caça e a quem foi caçador no regime que derrubou Jango e que forjou Pio Correa.

Jango voltou a Brasília, em novembro, e baixou à sepultura em São Borja com honras de chefe de Estado, sob as câmeras da imprensa e da TV.

Pio Correa foi enterrado no dia seguinte, sábado (7/12), quase anônimo, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Nenhum repórter testemunhou a cena.

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Benedito Tadeu César, do Sul21