Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Uma ciência mais ilustrada

Em um mundo de tecnologias digitais, os mais desatentos podem se perguntar se ainda há espaço para a ilustração científica. Um olhar mais demorado, no entanto, revela o papel fundamental que os ilustradores podem desempenhar na pesquisa, na educação e na divulgação da ciência. Em evento nacional da área, onde foram apresentados dados recentes sobre o campo no Brasil, a CH On-line conversou com um convidado ilustre, o biólogo e ilustrador científico português Pedro Salgado, protagonista do ressurgimento da ilustração científica em Portugal.

Salgado é coordenador e docente do mestrado em ilustração científica do Instituto Superior de Educação e Ciências (Isec), único dedicado à ilustração em Portugal. Em seus mais de 20 anos de experiência como ilustrador, teve uma série de ilustrações premiadas internacionalmente, é autor de cerca de uma centena de selos e foi um dos principais responsáveis por formar novas gerações de ilustradores científicos em Portugal, como Marco Correa e Diana Marques.

Nesta entrevista, ele discutiu o lugar da ilustração científica hoje e apontou os principais desafios impostos pelos novos tempos.

“Há uma preocupação com o conteúdo; quase nenhuma com a forma”

CH On-line:Com vídeos e fotos em alta resolução, qual o espaço da ilustração científica hoje?

Pedro Salgado – A ilustração está baseada em um processo que não é só artístico. Ela representa uma forma de ver, de apreender a realidade, é uma forma de conhecimento. É claro que as técnicas modernas de visualização também são, mas são de natureza diferente. A ilustração científica permite interpretar a realidade, coisa que a fotografia e o vídeo não fazem, eles só estão a apanhar o que lá está. O desenho é capaz de interpretar e fazer notar coisas que poderiam ser difíceis de observar ou de entender. Ou seja, o desenho é um processo de interpretação e de explicação, não só de representação.

E qual é o espaço ocupado pela ilustração científica: ela é mais arte ou mais ciência?

P.S. – Eu diria que ela é um pouco de cada. Muita gente quer marcar uma fronteira entre uma coisa e outra. Não acho que esse é o caminho. Existe uma zona de interseção, que é onde trabalha o ilustrador científico. Ele não é só artista, mas também não é só cientista, está numa posição privilegiada para comunicar ciência através da imagem que cria. Por isso, ele tem que conhecer as duas linguagens, tem que dominar o desenho e também entender a linguagem científica, para trabalhar junto com o pesquisador. Quando observamos os trabalhos apresentados em congressos internacionais de alto nível, há uma grande preocupação com o conteúdo, mas quase nenhuma com a forma. A questão é que, muitas vezes, isso poderia facilitar a comunicação daquela ciência.

“Ilustração científica é rigor da informação”

Essa posição na fronteira entre os dois campos às vezes é problemática?

P.S. – Às vezes, sim. É muito curioso, pois quando estou conversando com um “artista”, ele diz: “Você é estranho, não é artista.” Mas o cientista também não vê o ilustrador exatamente como um cientista. Na minha opinião, se o ilustrador trabalha numa área em que ciência e arte se cruzam, de alguma forma se vê um pouco mais do que o artista e um pouco mais que o cientista. Isso torna possível combinar as duas perspectivas, para produzir material de comunicação. Nesse ponto, o ilustrador precisa valorar melhor seu trabalho, para garantir seu sustento. Assim como um artista, ele tem que receber direito autoral, ele é dono do seu desenho e vende apenas o direito de uso da imagem. Seus originais também são valiosos, pois são obras de arte, podem ser vendidos como tal.

Apesar disso, a arte do ilustrador é bem diferente das demais, por sua aproximação com a ciência, certo?

P.S. – Esse é um aspecto central, é preciso deixar claro. Existe algo de muito diferente entre o artista e o ilustrador. O artista cria o original, enquanto o ilustrador tem o dever de se ater à realidade. Na sua obra, a realidade é mais importante do que o estilo e a visão artística. Há uma dependência da ciência, o conteúdo informativo é o mais importante, ele sempre trabalha condicionado pelo imperativo da comunicação. No trabalho do ilustrador, não há espaço para a ambiguidade da arte, o indivíduo tem importância limitada. Ele interpreta, mas o conhecimento é o que deve ser privilegiado no seu traço. Artista é expressão, ilustração científica é rigor da informação.

“A ilustração estimula a aproximação da ciência”

Uma discussão importante na ilustração científica hoje é a incorporação das novas tecnologias ao campo. Como o senhor vê essa questão?

P.S. – Acredito que é sempre importante estar atento às transformações do mundo à nossa volta. Em qualquer área é preciso se adaptar às novas tecnologias e aos novos formatos, aprender a lidar com eles e se beneficiar deles. O ilustrador também precisa se adaptar aos formatos digitais. Temos que pensar em utilizar alternativas que não se limitem à imagem bidimensional. Hoje em dia há tantas possibilidades disponíveis: imagens em três dimensões, animação… Cada vez mais será preciso conhecê-las. Há, também, a comunicação pela internet. O trabalho de ilustração se tornou internacional, é preciso estar acessível, a rede pode ajudar o ilustrador a viver da ilustração científica, dar visibilidade ao seu trabalho. Mas é claro que o avanço digital não tem que anular o trabalho tradicional ligado ao desenho. Dizer que a ilustração digital substitui a tradicional é um disparate semelhante a dizer que a música eletrônica substitui a música acústica. São coisas que se complementam e sempre haverá espaço para as duas.

Qual a perspectiva de futuro para o campo, na sua opinião?

P.S. – A ilustração científica está crescendo muito, as novas tecnologias abriram as portas de um mercado internacional. É preciso se adaptar a elas, mas vejo tudo isso com muito otimismo. Penso que, enquanto houver ciência, tem que haver comunicação. E enquanto houver comunicação, a imagem sempre será fundamental. Então, enquanto houver ciência, haverá a ilustração científica. Muita gente pensa que ilustração científica se resume à publicação de material científico, mas isso é apenas uma pequena parte. A outra parte, que eu penso ser muito maior, é a divulgação da ciência para o grande público. É nisso que a ilustração científica tem um papel muito importante.

A ilustração científica é fundamental para aproximar a ciência da sociedade, então?

P.S. – Sem dúvida. A educação e a divulgação vivem muito à custa de imagens. Os desenhos e ilustrações passam uma informação direta, muito mais fácil de ser apreendida, especialmente pelos jovens. Em manuais, livros e uma série de outros tipos de publicação, de outras formas de transmitir informação, a imagem está sempre presente neles. O papel do ilustrador é central nisso, já que as ilustrações precisam ser produzidas por quem compreenda a linguagem científica, mas também entenda as estratégias de comunicação visual. A ilustração também é fundamental, por exemplo, na educação relacionada à preservação do ambiente. Para educar e conscientizar a população a respeito da necessidade de preservar plantas e animais é preciso aproximar as pessoas da ciência – e a ilustração estimula isso.

“Há uma aproximação entre os ilustradores”

O senhor foi um dos precursores do sucesso recente de Portugal na ilustração científica. Como se interessou por essa carreira?

P.S. – Eu gostava muito de desenhar em miúdo, mas em certo momento optei pela biologia, tenho grande interesse pela biologia marinha. Fiz pesquisa científica durante quatro anos, mas depois de uma crise vocacional decidi juntar ciência e arte e fui estudar ilustração científica nos Estados Unidos. Naquela época, praticamente não existia ilustração científica em Portugal, era quase uma curiosidade, os professores e pesquisadores acreditavam que a área estava obsoleta. Ao voltar dos Estados Unidos, comecei a atuar como ilustrador, especialmente da área de ilustração marinha. Aproveitando que tinha acesso à comunidade científica, por ser biólogo, passei a divulgar e incentivar a ilustração, para que ela fosse valorizada como era nos Estados Unidos. Começamos a desenvolver cursos, formar mais ilustradores, e aos poucos vi crescer uma nova leva de talentosos ilustradores portugueses.

Entre as muitas ilustrações que compõem sua obra, os selos têm um grande destaque. O senhor poderia falar um pouco da sua relação com eles?

P.S. – Eu coleciono selos desde criança, sobretudo selos de peixes, minha grande paixão. Penso que essas coleções contribuíram para divulgar a ciência para mim e muitos outros, mais precisamente na sensibilização em relação a questões ambientais e de biodiversidade. Para uma criança é importante reconhecer as formas da natureza e criar relações de afeto com os seres vivos, é a única forma de protegê-los. Nesse sentido, educação é fundamental, tanto ou mais que os esforços para estudar e salvar o planeta em questões ambientais. Hoje poucas pessoas enviam cartas – o que se tornou uma prova de afeto e consideração – e infelizmente os selos estão desaparecendo. Mas há muitas outras formas de divulgação a partir da criação de imagem com conteúdo científico e isso é muito necessário. É triste verificar que muitos jovens conhecem melhor os nomes das marcas ou os jogos de computador do que os espaços naturais, as plantas e os animais. Somos produto da natureza, somos os responsáveis pela sua destruição, mas também responsáveis pelo que deixaremos para as próximas gerações.

E como o senhor vê o campo da ilustração científica no Brasil?

P.S. – Para dizer a verdade, eu não estou assim tão familiarizado com a realidade brasileira. Mas vejo um fortalecimento da área no país, um crescimento, há ótimos profissionais por aqui. Um passo fundamental, que observo que está começando a acontecer, é a aproximação entre os ilustradores, uma troca maior de informação. Isso leva à formação de profissionais mais competentes, a trabalhos com maior excelência. E como vivemos num mundo conectado, é uma forma importante de divulgar a profissão, de ser desejado por quem precisa da ilustração científica, seja um cientista ou uma instituição que deseje comunicar ciência, não só para a comunidade científica, mas para toda a sociedade.

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A imagem do ilustrador

Produzir peças artísticas realistas ou simplificadas da natureza, que complementem e facilitem o trabalho científico ou aproximem ciência e sociedade. De forma geral, assim poderíamos definir a ilustração científica. Em entrevista publicada na CH On-line, conversamos com o ilustrador português Pedro Salgado sobre os desafios do campo em tempos de tecnologias de imagem digital e sobre seu papel na divulgação e educação científicas. Mas quem são os profissionais que se dedicam a essa atividade importante, porém às vezes pouco reconhecida, em nosso país? E como é o mercado em que atuam?

É o que mostra uma pesquisa promovida pela União Nacional de Ilustradores Científicos (Unic), grupo informal que reúne cerca de 200 de ilustradores. Realizado pela internet no ano passado, o levantamento está longe de ser definitivo, em especial devido ao baixo número de participantes (no total, 85 questionários válidos), mas sem dúvida ajuda a conhecer melhor o campo no Brasil. Os dados, segundo uma das autoras da pesquisa, a médica e ilustradora Iriam Gomes Starling, do Hospital João XXII, em Minas Gerais, vieram ao encontro do que é observado, na prática, pelos profissionais da área.

Divulgada durante o IV Encontro Nacional de Ilustradores Científicos, a pesquisa mostrou uma área em crescimento, mas que enfrenta gargalos no desenvolvimento de um “mercado consumidor”. A concentração de profissionais é grande na região Sudeste, em especial em São Paulo. Norte e Nordeste, apesar de abrigarem grande parte da nossa biodiversidade, não têm, juntos, 10% dos ilustradores.

A botânica desponta como área mais atrativa, enquanto medicina, odontologia e astronomia são as menos procuradas – predominância que pode ser explica pela maior oferta de cursos de ilustração em botânica no país, como cogita Starling. A origem dos ilustradores é diversa (somente 36% deles ingressaram no campo pelas artes plásticas) e muitos possuem mestrado e doutorado – para a médica e co-organizadora da pesquisa, um ponto que se explica pela aproximação do trabalho desses profissionais com a ciência e que os diferencia dos artistas de forma geral.

Mercado ainda limitado

Os dados também mostram a dificuldade de financiamento da atividade: 88% dos entrevistados atuam como freelancer, ou seja, não têm qualquer vínculo formal relacionado à ilustração. Com uma produção pequena (mais da metade produz menos de oito desenhos pagos por ano), menos de 30% têm na atividade sua fonte principal de renda. Outra informação importante: 73% dos contratantes são pesquisadores, como pessoas físicas.

O uso de recursos digitais também ficou a desejar: quase metade dos ilustradores entrevistados trabalha apenas em meio físico, o que limita seu mercado potencial, já que muitos dos trabalhos de ilustração são feitos a distância, pela internet, segundo Starling. “A falta de domínio de softwares para edição de imagens também dificulta o adequado acompanhamento da produção de trabalhos impressos, pois pode causar problemas como a distorção de cores, por exemplo”, afirmou a médica.

Para o ilustrador botânico Paulo Ormindo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e presidente do comitê organizador do evento em que a pesquisa foi divulgada, o Brasil vive um momento de resgate de uma tradição que já vem do século 19. “A ilustração tem ganhado visibilidade, mais cursos estão sendo criados, há mais gente ilustrando, mas ainda há problemas, como o acesso aos meios de fomento”, disse. “É preciso, por exemplo, aumentar a inserção desses profissionais nos institutos de pesquisa e universidades, como no passado.”

Starling ressaltou outro obstáculo a ser superado: “Apesar de não haver empecilhos para isso nos editais, os pesquisadores deixam de prever recursos para ilustração científica em seus projetos, o que limita as possibilidades do ilustrador.”

A Unic pretende realizar um novo levantamento da área, mais abrangente, a partir da experiência adquirida com esse questionário pioneiro, na tentativa de traçar um panorama ainda mais realista da ilustração científica no Brasil.

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Marcelo Garcia, do Ciência Hoje On-line