A revista piauí mostra-se aberta ao publicar cartas com mais do que críticas a seu conteúdo: cartas que a espinafram de cabo a rabo. É democrático, é moderno, é inteligente, escolha eficaz quando se pretende dialogar com leitores inteligentes. (Permitam-me algum ufanismo: o Observatório da Imprensa faz isso desde 1996, sem triagens, sem manipulações de posição na página, sem censura, apenas a exigência de acatamento a regras mínimas de civilidade e às leis do país.)
Então, vez por outra a piauí publica uma carta mordaz de leitor iconoclasta. Foi o caso na edição 88, de janeiro de 2014. Sob a rubrica “Polêmica epistolar”, escreve Thiago Silveira, de Curitiba:
“Devo parabenizar a redação por lograr tamanho êxito em se consolidar como o carro-chefe da gauche caviar no país. Ao mesmo tempo que estampa anúncios de Itaú Personnalité, Vivara, Natura, Coca-Cola, H. Stern, Totvs, PwC e Santander, emplaca matérias vitimizando mensaleiros condenados em processo amplo e legítimo [entrevista com Miruna, filha de José Genoíno] (…). O ponto alto da revista foi o artigo macaqueado de fora [traduzido], de autoria do hagiógrafo de Che Guevara [Jon Lee Anderson], fingindo que critica Cuba (…).”
Bizarro “fingimento”
Nada sei sobre a biografia de Guevara por Anderson, mas do artigo considerado fingimento de crítica ao regime dos irmãos Castro, na seção “Carta de Havana” (“Detetive particular. Um autor de romances policiais navega pela realidade menos visível de Cuba”, edição 87, de dezembro de 2013), transcrevo alguns trechos para que o leitor do Observatório que não o tenha lido forme sua opinião sobre o julgamento do missivista. O protagonista do artigo é o escritor Leonardo Padura Fuentes.
“Na década de 80, Fidel Castro inaugurou outro memorial, uma ‘Marina Hemingway’, nos limites ocidentais de Havana, para atrair turistas ricos com seus iates. O herói de Padura tem horror ao lugar, ‘projetado de modo a excluir os cubanos sujos e proporcionar, aos belos e ricos do mundo, acomodação para seus iates, praias, comida, putas cordatas e muito bronzeado’. As ruas de Havana são ainda piores – o inverso de um paraíso dos trabalhadores, onde os cidadãos que se acotovelam vivem ‘assolados por uma ansiedade que só conseguem aliviar na forma de gritos, gestos violentos e olhares ressentidos’.”
“Como a Los Angeles de Raymond Chandler, a Havana de Padura é uma geografia do fracasso humano: as ruas são imundas; os elevadores não funcionam; as pessoas com as conexões certas dispõem de bom uísque escocês e carros caros, enquanto o resto passa fome.”
“Num famoso discurso de junho de 1961, Fidel Castro prescreveu um caminho para os intelectuais cubanos: ‘Dentro da revolução, tudo; fora dela, nada’. Nas décadas transcorridas desde então, o aparato cultural do Estado tem sido controlado por meia dúzia de dirigentes leais a Castro, que afrouxam ou endurecem os controles de acordo com as circunstâncias do país, seu gosto pessoal e, acima de tudo, a maneira como interpretam os caprichos de Fidel Castro.”
“Na época em que Padura era um jovem repórter, quem escrevia algo que desagradasse ao Partido era transferido para outro jornal, ou era encarregado de trabalho braçal numa plantação.”
“’Uma das maneiras que o sistema socialista cubano sempre teve de desqualificar alguém é fazer desaparecer o nome da pessoa’, diz ela [Wendy Guerra]. ‘Meus prêmios não são noticiados pela imprensa; eu não saio nos jornais e nem tenho acesso aos meios de comunicação’.”
“Os dissidentes políticos que realizam protestos públicos geralmente são detidos, e às vezes espancados por policiais ou grupos favoráveis ao regime”.
“Onde Fidel proibia o golfe no passado, investidores estrangeiros obtiveram licença para construir campos exclusivos, cercados de condomínios e shopping centers. Enquanto isso, em Havana, pela primeira vez vi gente sem teto: homens com roupas surradas, alguns sofrendo de evidente doença mental, vasculhando latas de lixo ou vagando a esmo pelas ruas”.
O leitor que usou o verbo “fingir” pode até ter dado um chute. Sem ter lido o artigo, supôs que fosse fingimento. Se leu, pior: passou atestado de incapacidade cognitiva em causa própria.
Santos e canalhas
Cartas de leitores são curtas, fáceis de ler. Na internet, muita gente “abre” a seção de Comentários antes de ler o texto comentado. E, sem lê-lo, pode fabricar dele uma imagem totalmente distorcida. “Quem conta um conto aumenta um ponto” etc.
Aconteceu neste Observatório, ao pé de artigo sobre o livro Gracias a la vida (ver “Denúncias e reflexões de Cid Benjamin”). O leitor Dante Caleffi abre seu comentário com a frase “Cada época produz seu ‘Cabo Anselmo’”, a meu ver infamemente injuriosa. Escrevi-lhe duas vezes para saber se minha interpretação estava correta – seria uma injúria contra Cid Benjamin. Caleffi não respondeu.
Seja lá o que for, é inaceitável. Na menos ruim das hipóteses, uma insinuação covarde. De vez em quando é preciso dizer: leitores são tão santos ou tão canalhas quanto qualquer outro de nós.
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