“Rolezinho” é uma palavra linda. “É a sociedade brasileira se mexendo.”
Assim vê Caetano Veloso, 71, os encontros dos jovens da periferia nos shoppings. Obviamente, não sem também alfinetar a mídia, que considera ter tentado passar a imagem de que “rolezinhos” eram “invasões”.
O cantor baiano, que lança o CD e o DVD do show “Abraçaço”, conversou com a Folha por e-mail. Caetano falou sobre a polêmica das biografias e defendeu-se de quem o acusou de censura e demagogia. Leia os principais trechos da entrevista.
“Não creio muito nas belezas das revoluções”
Qual sua opinião sobre os “rolezinhos”? Em sua opinião, há uma relação direta entre eles e os protestos de junho do ano passado?
Caetano Veloso – Só a palavra “rolezinho” (tanto pronunciada à paulista, com o “e” fechado, quanto à baiana, e mesmo carioca, com o “e” aberto) é já uma grande beleza. A pior coisa escrita num jornal sobre o assunto foi que a palavra é feia e cafona. Essa opinião, de um colunista conservador, é que era exibição de mau gosto. Claro que rolezinhos são a sociedade brasileira se mexendo. Tudo de que ela mais precisa. Essa é a característica que esse fenômeno comparte com as manifestações de junho. Mas acho que a imprensa deixou que se pensasse tratar-se de exibição ostensiva de garotada da periferia em shoppings de alta classe média, dando uma impressão de invasão, quando na verdade são encontros que se dão em shoppings da periferia.
Você viu o vídeo das decapitações no presídio de Pedrinhas, no Maranhão? Qual sua opinião sobre a situação do sistema carcerário brasileiro?
C.V. – Já em meu livro Verdade Tropical [1997], eu conto a ideia da sociedade brasileira que se formou em mim quando, preso na Vila Militar, ouvi gritos de torturados durante a noite: me disseram que não eram presos políticos, e sim, ladrõezinhos da zona norte do Rio. Pois bem, décadas se passaram e não vi nada que parecesse sequer querer desmentir a ideia que tenho de nossa sociedade: brutal, injusta, cruel. O que se revelou em Pedrinhas diz muito sobre o que é a realidade das prisões (e não só das prisões) brasileiras. Temos muito, muito a fazer. E, claro, não pode ser indolor.
Como vê o movimento black bloc? Acha que o Rio será palco de nova onda de protestos?
C.V. – Não gosto de violência nem desejo insuflar o entusiasmo de jovens narcisistas que adoram se sentir salvadores da humanidade. Mas, como disse, os nós de nossa estrutura social brutal não podem se desfazer sem dor. Black blocs têm a ingenuidade de rebeldes sessentistas (com os quais me identifiquei no ato na segunda metade dos anos 1960), por isso, tendo a simpatizar com eles, mesmo sendo capaz de criticá-los sem dó, como fiz no começo desta resposta. É provável que haja manifestações neste ano, com Copa e eleições e tudo o mais. Vejo que o todo da população está vacinado contra o que há de desestabilizador nessas movimentações e, portanto, irá neutralizar os protestos. O povo é conservador. Ao menos o brasileiro é. Mas, do jeito que anda o mundo, é sempre possível que um fato pequeno, corriqueiro, desencadeie uma nova onda, talvez muito mais forte e incontrolável. Não digo isso porque o deseje: sou classe-média e gosto de paz e sossego. Além disso não creio muito nas belezas que se atribuem às revoluções. Jamais utilizaria a palavra “terror” como algo desejável, como [o filósofo esloveno Slavoj] Zizek faz. Mas percebo a possibilidade de algo assim acontecer. E não sou contra, já que a injustiça, a brutalidade e a crueldade merecem reação enérgica.
“Sobrou uma frase impaciente para Roberto”
No caso das biografias, você declarou que a imprensa atacou-os de modo unilateral. Como analisa a imprensa cultural brasileira? Está reproduzindo o linguajar e a combatividade das mídias sociais?
C.V. – As mídias sociais influem em tudo. Mas muitos dos vícios da imprensa vêm de longe no tempo. Sou contra os artigos 20 e 21 do Código Civil e o disse por escrito em minha coluna [no jornal O Globo]. Sempre fui, também, contra o desejo de controlar as biografias por parte dos biografados. Detesto a ideia de que meus filhos e netos venham a tomar conta do que se publicar sobre mim depois que eu morrer. Não tenho vontade de esconder ou maquiar nada. Apenas ouvi meus amigos mais queridos, que pensam diferente de mim, e achei que, explicando a quem me lesse o quanto os argumentos deles me tocaram, podia contribuir para enriquecer a discussão. Mas vocês dos jornais, que têm emissoras de TV, revistas (ou colunas) de fofoca, editoras de livros etc., preferiram me caracterizar como “censor”. Danem-se. Acho que a mudança no Código Civil a respeito das biografias deveria ser vista com mais finura. Espero que os juristas e o que há de saudável na sociedade (sim, porque isso também existe!) cheguem a uma solução equilibrada. Claro que livros não enriquecem escritores às centenas no Brasil.
Quem escreve biografias não deve ficar sujeito a ver seu trabalho de pesquisa jogado fora. Quem tem influência na vida pública deve poder ser retratado com coragem e independência. Mas não apenas prefiro a amizade de Chico [Buarque] ou de Roberto Carlos aos afagos da imprensa: também respeito as questões que esses amigos levantam. Não há nada mais baixo do que jornalistas que, sabendo que é assim que eu penso, deixam prevalecer uma versão demagógica que se parece com os posts débeis mentais que são feitos agredindo Gil ou Paula Lavigne. Me eriço como as cerdas bravas do javali.
Que resultado você espera do julgamento da ação que discute a publicação de biografias não autorizadas, que deve acontecer ainda neste semestre?
C.V. – Que concorde com quem defende a liberdade de expressão e o direito à informação histórica, mas que não fale como os malucos da internet e os jornalistas de má-fé.
Como está sua relação com Roberto Carlos?
C.V. – Para mim, como sempre. Sempre o vi pouquíssimo. Eu o adoro como aprendi a fazer em 1966, instado por Bethânia, mas não me impeço de dizer de público que discordo dele. Se discordar, como fiz quando ele mandou telegrama ao presidente Sarney apoiando a censura [ao filme] Je Vous Salue, Marie (nos anos 80). No caso das biografias, sempre estive na posição oposta à dele. Disse isso a ele, a Chico, a Gil, a Milton, a todos – e prometi não atrapalhar o que eles fizessem, além de me esforçar para entender seus argumentos. Quando o grupo de advogados dele e seu empresário disseram que estavam recuando de uma suposta posição intransigente, eu mostrei que não era o que estava acontecendo. Dizer que era [isso] dava a impressão de que Paulinha Lavigne, que presidia o grupo Procure Saber, tinha agido despropositadamente em sua aparição no programa Saia Justa, o que levava os malucos da internet, a imprensa histérica e os autores de cartas à redação a nos xingarem mais, sobretudo a Paulinha, que não é artista, o que parece dar licença à imaginação raivosa dessa gente. Ora, eu sou um homem livre, maluco, sozinho, mas adoro Paulinha, com quem tenho dois filhos lindos e uma história de décadas. Respondi a certas baixezas com veemência – e sobrou uma frase impaciente para Roberto. Sei que ele entendeu meu pedido de perdão porque sei que ele entende de sentimentos.
“Devo viajar para fora do Brasil”
“Abraçaço” ao vivo estabelece um diálogo entre seu novo disco e sua obra dos anos 70. Como vê o resultado desse entrelaçamento?
C.V. – O retorno às canções de “Transa” começou no “Cê”, passou pelo “Zii e Zie” e agora chega ao “Abraçaço”. Neste só está “Triste Bahia”. Nos outros dois estavam canções feitas em inglês, que o público jovem identifica mais com aquele álbum.
“Abraçaço” encerrou a trilogia que se completa com “Cê” e “Zii e Zie”. Qual será seu próximo projeto?
C.V. – Ainda não esbocei nem um gesto nessa direção. Nem mesmo dentro de mim. Estou na Bahia e, depois das apresentações para saudar o lançamento do DVD, devo viajar para fora do Brasil (já fui à Argentina, ao Uruguai e à Colômbia, agora devo ir para o hemisfério Norte).
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Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo