“Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. p. 1520)
No texto original do qual colhemos a epígrafe, registra-se a grafia “bem-feita”, segundo os padrões anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990.
Há algum tempo, revendo esse texto para um exame, adaptei a palavra às novas regras e cravei “benfeito” não sem antes, juntamente com um amigo inconformado com a nova roupagem da palavra, consultar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), da Academia Brasileira de Letras, em sua quinta edição, vinda a público em 2009. “Benfeito”, substantivo ou adjetivo, é o que lá se registra, contrariando a forma “bem-feito”, tão comum aos nossos antigos olhos. Pesquisando agora, não resisto visitar o site da Academia Brasileira de Letras, que disponibiliza o Volp. Curiosamente, lá aparece “benfeito” apenas como substantivo.
Recebo agora, de presente, quatro ótimos dicionários, atualizados pelo novo Acordo, um agrado do Ministério da Educação aos professores públicos brasileiros. Aqui, a nossa gratidão! Tenho, nas horas de folga, folheado e aprendido muito com Bechara, Houaiss, Francisco Borba e Caldas Aulete, que emprestam suas marcas de notória contribuição à lexicografia brasileira.
Dicionários ao lado, não custava um pulinho ao “benfeito” (seria “bem-feito”?) para ver se a relutância do amigo tinha amparo em algum dicionarista recalcitrante.
Sem discriminação
Comecemos pelo Aulete. Que susto! O dicionário não registra “benfeito”. Lá aparece “bem-feito”, para o “que foi feito com capricho, apuro (trabalho bem-feito)”. O dicionário faz ainda remissiva à forma “bem feito”, encontrável no verbete “feito”. Vamos lá? Ensina o dicionário que “bem feito” é a maneira “com que se expressa ironicamente (e com uma ponta de maldade) que uma consequência ruim de uma ação errada foi merecida. Você se deu mal na prova? Bem feito, quem mandou colar?”.
Visitando o Francisco Borba, lemos que “benfeito” é adjetivo como em “Ele prezava o verso benfeito” e, ainda, interjeição, para a qual o dicionário registra o seguinte exemplo: “Na hora do lance, o jogador escorregou e caiu. Benfeito!” Hora do Houaiss Conciso. Lá se lê apenas que “bem-feito” é adjetivo. Intrigado, volto ao Borba e leio no final do verbete: “Para a tradição lexicográfica é bem-feito”. Por fim, o Bechara, cujo verbete reproduzo quase integralmente: “bem-feito (…) adj. 1. Bem-acabado. 2. Bem-proporcionado; elegante. [OBS.: Escreve-se benfeito (aglutinado sem hífen, como subst. no sentido de ‘benfeitoria’) e bem feito (separado como interj.)].”
Mestre Aurélio não estava no pacote de presentes. Fui ouvi-lo, na sua versão digital, e lá se registra a forma benfeito (adj.), com a indicação de que é grafia recomendada pelo Acordo.
As citações, obviamente, falam por si. As discordâncias são evidentes. Que belo entrave à uniformidade gráfica pretendida pelo Acordo!
Para nós, se permitido é opinar, tudo ficaria benfeito se, nas situações aqui descritas, usássemos “benfeito”, como, aliás, se deduz do dicionário de Borba. Tão simples!… Bastaria seguir os termos do Acordo, no qual, na base XV, 4º item, a palavra aparece, sem discriminação de classe gramatical ou contexto: “Em muitos compostos, o advérbio bem aparece aglutinado com o segundo elemento, quer este tenha ou não vida à parte: benfazejo, benfeito, benfeitor, benquerença etc.”. Benfeito, não?
******
Walter Rossignoli é professor e autor de Manual de ortografia: teoria e prática, pela Editora Ciência Moderna