O humorista e colunista do Estado de S.Paulo Fábio Porchat está sendo ameaçado seriamente por policiais militares do Rio de Janeiro em consequência do esquete Dura, veiculado na internet pelo grupo humorístico Porta dos Fundos. O Blog do Soldado, uma página não oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, publicou o esquete, com comentários de indignação dos policiais. Eles se sentiram ultrajados e mesmo humilhados em sua função de exercício da segurança pública, ameaçando se vingar do ator. Em decorrência disso, o pai de Fábio, ex-deputado, foi ao Senado solicitar proteção para o filho, provocando então um fato político. O fato enuncia a atuação truculenta das polícias militares, que pretendem ocupar uma posição de exceção no Estado brasileiro, como ocorre, aliás, com as demais instâncias do poder constituído de nossa República capenga.
É preciso reconhecer que a totalidade do episódio seria cômica se não fosse triste. Assim, fica patente que a democracia brasileira ainda não convive com o humor e a ironia como ocorre na maior parte das democracias de longa duração, como outros episódios recentes já mostraram. Além disso, é também óbvio nesse episódio como nossa democracia não suporta a plena liberdade de expressão. Em decorrência disso, a arte e o trabalho intelectual pagam um preço alto por essa censura direta e indireta, pela qual a criminalização da vida social no Brasil vem se transformando numa prática nefasta e perigosa.
Contudo, se examinarmos a composição do dito esquete, o que é que nos é apresentado? Nada mais nada menos que uma inversão caricata daquilo que as forças responsáveis pela manutenção da segurança pública fazem com os cidadãos brasileiros no dia a dia. Vale dizer, esses agentes públicos humilham e achacam ostensivamente parcelas significativas da população, principalmente se essas são frágeis do ponto de vista social, etário, étnico e sexual. Com efeito, são os pobres, sobretudo se forem negros, além dos jovens de todas as cores e classes sociais, sem esquecer das mulheres e dos homossexuais, que são certamente os alvos privilegiados da Dura, conhecida como o “inferno nosso de cada dia”. É a cidadania brasileira que é assim achincalhada, de maneira acintosa e despudorada, pelas forças da ordem. É essa inversão jocosa que o esquete propõe em sua paródia, mostrando cidadãos indignados, grosseiros e violentos cobrando dos policiais que estejam à altura da função social que lhes é constitucionalmente atribuída, mas agindo paradoxalmente como fazem os policiais.
Por que então a reação descabida dos policiais? Certamente porque eles se sentem denunciados naquilo que fazem com os cidadãos, visualizando na inversão cômica proposta pelo humorista a projeção num espelho gigantesco das próprias formas de ser e de agir. Isso tudo nos é mostrado de forma realista nos seus menores detalhes gestuais e nos seus inconfundíveis jogos de linguagem. Se Narciso só ama o que é espelho, como toda a tradição psicanalítica, de Freud a Lacan, está careca de saber e que até Caetano Veloso evoca numa de suas canções, no caso em questão os policiais reagem violenta e perigosamente contra o que é mostrado porque querem ocultar o que são e o que fazem – isto é, a prática cotidiana da “dura”.
Farsa da tragédia
Se essa prática não estivesse naturalizada entre os policiais, não haveria razão para que o Blog do Soldado reagisse da forma inusitada que o fez, de maneira a representar assim a totalidade da corporação. Pode-se mesmo supor que, se os policiais em questão se sentissem desonrados pela paródia, poderiam escolher os canais legais que a ordem democrática lhes oferece para questionar tal modalidade de humor. Contudo, se não o fizeram, mas preferiram em vez disso fazerem ameaças de “metralhar” o humorista, isso revela, por essa “outra volta do parafuso” (na imagem do escritor Henry James), a truculência policial na nossa existência. Enfim, pela repetição do mesmo os policiais confirmam o que fazem.
Além disso, a inversão paródica proposta pelo humorista, que gerou tal reação despropositada, nos remete a todas as demais inversões que nos últimos dias têm caracterizado o imaginário da sociedade brasileira. As formas pelas quais os recentes acontecimentos no Rio têm sido tratados pelas autoridades políticas e policiais, assim como por uma parcela da mídia, ao realizarem inversões circenses do que de fato acontece em torno do “terrorismo” relançam num espelho assustador as tentativas para restaurar práticas autoritárias vigentes na ditadura militar.
O que não se fala quase nunca é que, além de ser um personagem mítico, Narciso é o nome de uma flor, utilizada em rituais funerários na Grécia Antiga, remetendo então à experiência da morte. Portanto, na imagem do sujeito projetada no espelho, seja essa bela ou horrorosa, como é o caso da que é reconhecida na sua reação pelos policiais, o que está também em jogo é a figura macabra da morte, como Oscar Wilde representou de maneira brilhante em O Retrato de Dorian Gray.
Se Marx dizia, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, que a história acontece como tragédia e se repete como farsa, não resta dúvida de que essa proposição lapidar serve para explicitar o que está em causa nesse episódio funesto. Com efeito, as forças da segurança pública agem frequentemente com violência, desrespeitando direitos fundamentais da cidadania e das regras democráticas – o que, convenhamos, é da ordem do trágico –, mas reagem pela ameaça da força e da morte a qualquer um que tenha a coragem de dizer isso alto e bom som.
O que os humoristas fizeram em sua cena, pela inversão de posição entre as figuras do policial e do cidadão, foi apenas a farsa dessa tragédia que nos acossa e nos deixa cada vez mais inseguros face às supostas forças da ordem pública.
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Joel Birman é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, professor adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ