Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Para a fotografia, tem que saber experimentar o prazer de esperar’

A pé, a cavalo, o olhar aprende de outro jeito. A melhor escola como fotógrafo para Sebastião Salgado foi talvez a daqueles deslocamentos para conduzir o gado pelas terras de seu pai durante dias, percorrendo centenas de quilômetros. Foi assim que a sensibilidade visual de quem é hoje um dos grandes do mundo se foi educando. Passo a passo, aprendendo, diz, “o prazer da espera”. Por oito anos andou imerso em seu último projeto –Gênesis, em exposição até maio no museu Caixaforum, de Madri–, oito anos nos quais se fixou nas origens do planeta, ainda presentes em muitas paragens preservadas –ou em perigo– da Terra. O olhar ecológico, ideológico desse brasileiro exilado na França durante os anos duros da ditadura, nômade, mas tremendamente familiar, moldou uma ética e uma estética global que nos ajuda a compreender muito melhor o mundo.

Que carro tem?

Sebastião Salgado – Tenho dois. Um no Brasil e outro na França, um Prius (híbrido).

Lendo as suas memórias, De minha terra à Terra (publicadas na Espanha por La Fabrica), não me negará que um “dois-cavalos” dava para muita coisa. O senhor percorreu a Europa. De Praga à Alemanha, de Genebra à Costa do Sol.

S.S. – Aconteceu algo muito engraçado com esse dois-cavalos. Percorremos toda a costa mediterrânea espanhola em junho de 1970. Acampamos antes na França e, quando chegamos a Granada, um cheiro horrível. Achamos que um rato tinha morrido dentro. Paramos, comemos enquanto todo mundo dormia a sesta, e tiramos tudo, até os assentos. Debaixo de um deles encontramos um camembert podre. Ali estava a causa. Nessa época não existia o Mercado Comum, quase ninguém conhecia camembert. Colocamos esse queijo onde pudemos. Uma senhora que passava pegou a caixinha e só pelo cheiro a jogou no chão; que coisa, naquela época ninguém tinha ideia do que era o camembert, e os presuntos estavam proibidíssimos no restante da Europa, como se fossem uma praga que estivesse para invadi-los, enquanto eles deviam proteger essa linguiça que comem em Bayonne. Quão perto estávamos e ao mesmo tempo, quão distantes. Sim, sim, mas era assim. Embora essa distância tenha diminuído entre a França e a Espanha, ainda persiste entre a Itália e a França, acho. Vivem de costas.

Falando de distâncias, isso para o senhor foi de grande importância em sua vida. A que separa Madri e Paris era quase a que seu pai percorria conduzindo gado de um lado a outro em sua região no Brasil, em Minas Gerais.

S.S. – Também já estão diminuindo. Hoje fazemos essa distância em meia hora de voo. Mas na época não havia nem estradas, somente caminhos: levava-se o gado de vale em vale, procuravam-se pontos específicos para cruzar o rio. Contávamos os deslocamentos em tempo, não em quilômetros. Isso entrou na minha vida. Eu caminho muito, realizo parte de minhas reportagens a pé porque nesse momento olho e sinto a vida, a natureza, Agora ando com GPS e me oriento melhor. As distâncias são muito, muito relativas. Talvez caminhe quilômetros para me aproximar de um ponto que pode estar a 800 metros em linha reta.

Graças a essas voltas, o senhor aprendeu a enxergar melhor?

S.S. – Aí é quando observo. O tempo certo no qual se produzem e se desenvolvem os fenômenos naturais. Lentamente, senão ocorre um curto-circuito. A essência muitas vezes está nas curvas, nas voltas que você dá, não na linha reta. Olhar e saber esperar. É preciso saber experimentar o prazer de esperar. Como dizer? Uma possibilidade imensa de viver junto ao passado. Desfrutar momentos da sua vida, sua história, recordar. Assim a gente pode esperar horas porque está se transportando a experiências cruciais. É um prazer muito grande. Os caçadores, que vivem a espera, sabem disso que estou te falando. Entende-se bem neste mundo em que vivemos obcecados pelas pressas. Vivemos em um acelerador de partículas, em um clima de expectativas. É como funcionam os mercados, quando às vezes a economia vai muito bem, e as finanças, muito mal, quando você vê que a indústria funciona, mas as agências de classificação te alertam que vai piorar, e é quando isso acontece que as expectativas bloqueiam, com uma percepção às vezes falsa, o bom funcionamento das coisas.

Justo o contrário da fotografia?

S.S. – Supõe-se que essa arte deva acompanhar a realidade de um tempo ou um acontecimento, e congelá-la. Se você vive para a fotografia, você se vê imerso nos processos autênticos. Quase tudo o que ocorre pode se tornar interessante. O que você precisa é compreender isso, participar disso para captar.

Isso é muito zen, não?

S.S. – Bem, ouça, quando a gente viaja muito consigo mesmo, acaba por ser um tanto zen. Essa é uma profissão muito solitária. Meu primeiro livro se chamava “Outras Américas”, publicado por Luis Revenga, um editor. Foi lançado por ocasião dos 500 anos do descobrimento. Com esse livro eu aprendi a viajar. Eu tinha retornado ao Brasil, de onde saí por problemas políticos; adentrei em comunidades de índios, que são muito desconfiados dos ocidentais. Para poder me achegar a eles tive de passar muito tempo a seu lado, explicar-lhes o que queria fazer. Acabei contando histórias que lhes interessava porque me pediam.

O que os atraía?

S.S. – Histórias da Palestina, do Amazonas, e eles me contavam as suas. Era uma época em que eu não tinha muito dinheiro. Ia de ônibus e andando, mas não podia voltar porque só dispunha de dinheiro para a ida. Minha família fazia muita falta, minha mulher, meu filho mais velho, minha pequena célula tribal, mas em troca fui aceito na comunidade deles. Aprendi a ficar só. Essas fotografias têm um valor muito grande para mim.

Persegue um ideal com a fotografia que pratica?

S.S. – Muitas vezes me rotularam de documentarista, militante, de ter um olhar baseado na economia. Nada disso. A fotografia é minha vida, minha forma de viver com coerência.

Cabe alguma objetividade detrás da objetiva da câmera?

S.S. – ão, as pessoas fotografam com seu passado, com sua ideologia, com seus traumas, com seus pais, sua infância, sua personalidade nas costas, à contraluz, a favor da luz. Não cabe. É assim, profundamente subjetiva.

No que o senhor nunca quis se transformar é no fotógrafo que captou o atentado contra Ronald Reagan e que acabou sendo sempre definido por esse estigma. Como conseguiu transcender isso?

S.S. – Isso foi um acidente. Minha primeira viagem a Washington. Qualquer fotógrafo teria ficado de bom grado com tal qualificação. Não acredita? Sim, mas eu não queria que aquele segundo me trouxesse uma marca que eu não desejava. Tenho as fotografias, guardei-as e elas não circularam mais.

O senhor não se importa de ter passado para a história por séries como A mão do homem? Tinha consciência, quando estava fazendo esse trabalho, de que o mundo vivia uma transição para uma outra coisa?

S.S. – Sim, eram os anos oitenta, não se falava em globalização, não existia a Internet. Eu tinha consciência de que estava testemunhando o fim de uma era. Tanto que a série se chamou também de Trabalhadores, Uma arqueologia da época industrial. Para mim era o fim de um mundo anterior às máquinas e aos robôs. Senti que alguma coisa forte estava acontecendo e que eu devia fazer uma homenagem à classe trabalhadora. De fato, eu queria que o livro se chamasseProletários, mas o editor não gostou da ideia, achava que isso não venderia nada. Mas eu me baseei em teorias marxistas, minha formação tinha sido essa para olhar para a mineração, a agricultura, não os serviços. Com isso eu tive uma ideia aproximada do que viria a ser a globalização, de que se produziriam grandes movimentos entre países e foi assim que começou meu projeto sobre migrações, Êxodos, o passo seguinte ao fenômeno que produziu aquilo, a consequência.

Entretanto, em vez de fotografar o mundo tecnologizado e frio do presente, preferiu buscar nas origens e empreender ‘Genesis’. O senhor tem uma ideia de como seria para a sua câmera o mundo asséptico dos trabalhos de hoje na grande cidade?

S.S. – Não que isso me apeteça muito. Poderia ser feito de uma forma muito espetacular, mas por outras pessoas com grande identificação com esse mundo. Eu não dedicaria oito anos, como fiz com Gênesis, a isso. É preciso ter um grande amor pelo que se está empreendendo. Mas para quem queira, acho que este é um grande momento para levar a cabo um projeto desses, alguém que venha de uma formação moderna, da engenharia, da tecnologia, mas que queira se dedicar à fotografia.

Que não contem com o senhor para isso, não é?

S.S. – Eu, não, não. Eu não sei nem enviar um fax, só uma mensagem por este telefone, isso sim. Criaram uma coisa modernas dessas no Museu de História Natural de Londres por causa de Gênesis… Não no Twitter, no outro…

No Facebook?

S.S. – Isso, no Facebook, acho que sim, mas eu nem vi. Não é para mim. Eu estou considerando voltar ao Amazonas e defender uma cultura que está em perigo por causa da alta tecnologia agrícola que procura se expandir, para protegê-los para denunciar o acosso que sofrem esses povos indígenas.

Fale com Dilma Rousseff, que é amiga sua, ou com Lula, para que o detenham.

S.S. – u falo, mas não é culpa deles. O Brasil é uma democracia e a extrema direita do meu país está dominada pelo negócio agrário. Essa classe conservadora tem um poder brutal, não com um partido, mas em todos, estão em cada esquina. Tanto faz que a Dilma queira pará-los, eles vão adiante com essas leis. É muito forte a luta com o governo e com os grupos ecologistas, embora tenham conseguido que esses exploradores deixem as terras indígenas que tinham ocupado.

Bem, já é alguma coisa. O senhor se mostrou muito partidário dessa classe política que agora está no poder no Brasil, que foram perseguidos na mesma época que o senhor e presos.

S.S. – Não só os que estão agora, mas desde a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Aí começou tudo.

Mas foi muito eclipsado depois por Lula e pela própria Dilma.

S.S. – Não tanto, eles o reconhecem, em que pese suas distintas procedências dentro da esquerda. Cardoso vinha da burguesia; os outros, do proletariado puro.

O senhor provém da classe de proprietários.

S.S. – Quando eu era criança, meu pai chegou a ter umas dez fazendas. Era um latifundiário. Possuía 15.000 cabeças de gado, muito. Depois foi se desfazendo delas até ficar com uma, na qual depois plantamos um bosque. Mas tampouco temos tanto. Mil hectares no Brasil é uma propriedade pequena, algumas têm 100.000.

De onde se sente?

S.S. – É difícil saber. Eu viajei a vida toda. Tenho sete irmãs, eles se casaram, eu ia de um lado para o outro. Depois me formei economista, me mudava com a Organização Mundial do Café em missões na África, por todo o planeta. Mas se eu assistir a uma partida de futebol, torço pelo Brasil. Se entrou em um avião, fico mais contente se este estiver se dirigindo ao Brasil, embora tenha aprendido tudo pelo mundo.

E a França?

S.S. – Eu a adoro. A França e os franceses. Eles foram tudo, solidários, generosos no momento em que sofríamos essas ditaduras tão terríveis na América Latina. É um país muito próximo para os brasileiros. Nossa Constituição tem como modelo a francesa, em qualquer cidade com mais de 100.000 habitantes existe uma Aliança Francesa, aprendi sua língua no Brasil, estudávamos mais francês e latim na escola do que inglês.

Em que pese aquela influência racionalista e laica, a esquerda na qual o senhor militou estava muito marcada por movimentos eclesiásticos.

S.S. – O Brasil, nesse sentido, teve uma Igreja muito de vanguarda até a chegada desse papa polonês que desmantelou aqueles movimentos, sobretudo a Teologia da Libertação. Eu nunca fui crente, mas eles contribuíram em muitas coisas e a esquerda atual de hoje foi formada em grande parte por eles.

Custou-lhe muito tomar essa decisão de passar da economia para a fotografia? O senhor vivia mais folgadamente.

S.S. – Não me custou. Quando me instalei na Inglaterra e dali comecei a viajar para a África pelo meu trabalho, a fotografia me proporcionava mais prazer do que os relatórios que eu tinha que fazer. Então um dia me meti com Lélia num barquinho de um lago em Hyde Park e discutimos o tema durante horas. Eu tinha um convite para ser professor na Universidade de São Paulo, outro para trabalhar em Washington no Banco Mundial; para um jovem economista era um futuro fabuloso.

Mas fechou essas portas.

S.S. – Eu me lembro do dia em que apresentei minha carta de demissão ao meu chefe na Organização Mundial do Café. Ele disse que sabia que eu iria para o Banco Mundial; quando lhe disse que não, que ia me dedicar à fotografia, ele disse: “Mas você é um idiota! Eu também quero ser fotógrafo, e minha mulher e minha filha!”.

A partir daí se deu uma contradição curiosa na sua vida. O senhor se converteu num nômade que se aferrava muitíssimo a uma família que não se rompeu. O senhor continua casado com Lélia Wanick mais de 50 anos depois…

S.S. – Acho que viajo pelo prazer de voltar. A grande alegria em mim se produz quando tomo esse último taxi que me leva para casa. Minha mulher é fantástica. No começo, ela podia ir de Paris a Bruxelas para me buscar em carro porque eu me metia em voos muito baratos. Ela desenha os meus livros pondo um coração imenso nesse trabalho. Viajou comigo para parte deGênesis, monta as exposições. Um fotógrafo é a ponta de um iceberg, mas eu tenho um núcleo que é a minha família. A vida é essa. Tive muita sorte, minha fotografia não seria a mesma sem ela, sem meus filhos, Giuliano e Rodrigo; o segundo com síndrome de Down.

Que sensibilidade o Rodrigo lhe trouxe?

S.S. – Outra relação com a comunidade próxima. Depois de tê-lo me dei conta, caminhando pelas ruas, da quantidade de gente que existe na sua condição. Quando vou à sua escola, me relaciono com todo tipo de garotos; ele nos deu uma oportunidade única para nos inserirmos no seu mundo. Está dotado de uma doçura tão grande, de uma simplicidade e uma sensibilidade extremas, é fabuloso. Quando você tem um filho assim não vive uma vida como a dos outros. Ele ficou sempre conosco, não o internamos em lugar nenhum. Não nos relacionamos muito socialmente porque devemos ficar com ele. Ele nos uniu, nos abriu a mente em diversas direções.

Em Gênesis, eu vejo o olho de Deus. Era essa a sua intenção?

S.S. – Bem, eu não acredito em Deus, mas sim nessa ordem estabelecida entre todos os elementos do universo, fruto da evolução natural, com esse saber natural, essa interação de milhões de anos, talvez seja produto dessa comunhão entre a solidão e a natureza. O que sim eu encontrei na Etiópia foram comunidades próprias do Antigo Testamento, sem contato com outras comunidades do entorno, mas extremamente modernas em sua organização interior, produtivas. Quando você chega, lhe lavam os pés. Noções que permitiram essa fertilidade às margens do Nilo no Egito e que foram cruciais para a construção da nossa história moderna. Eu vi todas essas coisas. Uma viagem para mim absolutamente essencial.

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Jesús Ruiz Mantilla, do El País