A verdade, quando narrada, se torna ficção. A frase de Eduardo Coutinho é, de forma mais científica, “como a tese de quem conta um conto aumenta um ponto”. Curiosamente, ela também pode traduzir o que foi esse documentarista único para a história da filmografia brasileira, pois, quando o diretor recorta a realidade, também se torna poeta.
Com a surpresa de sua morte no dia 2 de fevereiro, comecei a me lembrar, com tristeza, de que, aquele desejo de trabalhar novamente com Coutinho não se realizará. O CineSesc começou na sexta-feira dia 21 de fevereiro a veicular uma entrevista ilustrada dirigida por Carlos Nader, particular amigo desse sensacional artista, esse quase psicólogo das lentes. O trabalho, produzido pelo Sesc, serviria como um documentário para homenagear um programa no qual o Sesc foi pioneiro no Brasil: o Trabalho Social com Idosos que, em 2013, completou 50 anos. Nader, com uma câmera a postos e uma excelente ideia, pensou expor a velhice do maior profissional do gênero do Brasil, Coutinho.
Perda inestimável
Com 80 anos, ele era o exemplo máster de uma velhice arguta, sem ser pessimista ou censor de novas tendências. Seus trabalhos entremeavam a relação cotidiana dos brasileiros com a história do Brasil e com suas histórias pessoais. A certa altura da entrevista pergunta Carlos Nader: “Onde a vida se confunde com obra?”. Reservado de sua vida pessoal, Coutinho se esquiva da pergunta ou porque assim o deseja ou porque nem sabe mesmo colocar limites no que se denomina uma coisa só: a paixão por filmar e por ser ouvinte de estórias, de prosas realistas e fantasiosas, de momentos de espontaneidade que dependem de um homem experiente e doce e ao mesmo tempo profano com seu cigarrinho na boca, para deixar bem claro que de padre ele não tem nada.
De política à música, da urbanidade à velhice, Coutinho conduziu sua belíssima narrativa fílmica sem nenhum sentimentalismo exagerado, mas com a carga dramática do viver que só os países da América Latina experimentam. Em novembro de 2013, como registro imprescindível para a história do cinema brasileiro, lançamos, em parceria com a Cosac-Naify, o livro de homenagem à obra de Coutinho, organizado por Milton Ohata. Ali, as críticas, os textos e os relatos sobre a forma com que Coutinho filmava estão em evidência, o que acabou por virar um compêndio completo de sua vida profissional tragicamente interrompida.
Grande perda para o cinema, mas, sobretudo, luto do pensamento crítico.
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Danilo Santos de Miranda é diretor regional do SESC SP