Começarei a escrever alguns artigos sobre a estranha moda de o Estado criar bolsas, pensões, auxílios, fundos, enfim. E não importa se a esfera for municipal, estadual ou federal; o que vale é sair premiando a quem bem nossos políticos entendam que devam atender. A mais recente delas (pelo menos enquanto escrevo este texto) é a inédita pensão mensal à criança gerada após estupro, a chamada “bolsa-estupro”. A regalia foi concedida pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, a uma mãe violentada pelo pai na pré-adolescência (ver aqui).
Não entro no mérito e na dor da mãe. Sou solidário e lamento profundamente o que se passou com ela e com todas as vítimas de estupro em qualquer rincão do Brasil e do mundo. Entretanto, se tal caso virar prática imagine quanto teremos que desembolsar e, o pior, poderemos estar de certa forma estimulando uma prática inusitada: a do “estupro consensual”, no qual vítima e estuprador poderiam estar em conluio pare receber o benefício de um salário mínimo de R$ 724 até o filho completar 21 anos.
O estado do Rio afirmou em nota que vai pagar a quem cumprir os requisitos legais da lei estadual de 1998 que criou o benefício: bastará que a mãe que tiver sido engravidada em situação de estupro registre o filho como seu.
“Operação tartaruga”
Sinto falta de mais criticismo por parte da mídia. De mais perguntas permeando as pautas. De mais direito ao contraditório. Atropelados pela pressa e acomodados pelas mil possibilidades do universo virtual, parece que perguntamos e apuramos cada vez menos. Aceita-se muito facilmente as ditas versões oficiais. Temos menos personagens e mais fontes sem identificação, isto é, quando elas aparecem…
Aonde iremos parar? Recentemente, em uma entrevista concedida à rádio CBN, um membro da Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF) falou que a associação da qual ele participa não abria mão de auxílio moradia e vale alimentação também para inativos e pensionistas. Novamente, pergunto: e se eles receberem, por que não outras categorias? E aí poderá advir uma enxurrada de ações pedindo as mesmas vantagens.
Mas a PM-DF não para por aí: policiais da corporação entraram na Justiça alegando que não estavam autorizados por lei a conduzirem veículos de socorro e emergência. E até liminar ganharam nesse sentido. Resultado: policiais do 4º Batalhão da PM do Guará, se recusaram, numa noite recente de fevereiro (7/2), a dirigir as viaturas para as rondas nas regiões administrativas de responsabilidade deles, a saber: Guará, Lúcio Costa e Cidade Estrutural. Parece piada mas, segundo consta, todas as rondas foram feitas a pé. Foi criada uma situação talvez única no mundo: militares dizerem que seria necessário passar por curso de formação para dirigir as viaturas de modo análogo a gerações anteriores de colegas… O comando da corporação, assim como o GDF, teve de entrar pesado na Justiça para garantir que tal fato inusitado fosse corrigido e alegasse que o curso de formação policial é suficiente para atender a exigência do artigo 145, inciso IV, do Código de Trânsito.
Ao deparar com isso tudo, tive a curiosidade de pesquisar a remuneração de nossos policiais militares e descobri em matéria publicada no dia 31 de janeiro de 2014, e assinada pelo jornalista Marco Prates, da revista Exame, que diz:
“Para pressionar o governo a conceder aumentos salariais, a Polícia Militar do Distrito Federal – que já possui o 2º maior contracheque do Brasil – tem atuado desde outubro de forma mais lenta no atendimento a ocorrências, na chamada ‘operação tartaruga’, que ganhou força no último mês. No entanto, mesmo que o governo atenda ao pleito de reajuste, de 66%, não há evidências de que isso possa melhorar de alguma forma a vida da população da capital, assolada por uma onda de violência em janeiro.”
Mídia noticia com cara de paisagem
Ainda na mesma matéria lemos:
“Um dos mais altos do país, o salário inicial de um soldado da polícia do DF é de R$ 4.122. Mas em vez de figurar nas últimas colocações quando se trata de violência, o DF tem a 9ª maior taxa nacional de homicídios. Já um coronel da mesma Polícia Militar ganha R$ 16.295, valor que é o 3º mais elevado nacionalmente. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013 e referem-se ao ano de 2012. Por outro lado, o Rio Grande do Sul – onde o salário para quem começa na carreira não chega a um terço do da capital federal – está entre os 10 menos violentos do Brasil.”
O valor do salário inicial dos soldados gaúchos, segundo a matéria, é de R$ 1.375,71.
Tudo isso nos faz refletir. O cidadão não se vê estimulado a buscar formas de crescer, emancipar-se, criar asas e voar. Ao contrário: vê-se envolto numa teia de preguiça e comodismo que o leva a apenas lutar por supostos e improváveis eternos direitos sem precisar, necessariamente, provar seus méritos. Não é à toa que vivemos um momento interessante de retorno aos lares. Explico: antigamente, os filhos viam-se aconselhados pelos pais a saírem de casa e construírem vidas independentes e profícuos. A ideia era de construção. Hoje, vemos um aumento de filhos e filhas encostados, enroscados mesmo na total dependência de pais, mães e avós. Filhos com nível superior e idades que superam três, quatro, cinco décadas. E quando se casam, não titubeiam: continuarão às custas das famílias.
Mas numa teia paradoxal preocupante, já que ao mesmo tempo em que depositam a carga do futuro nas costas dos outros, nem sequer retribuem com respeito a coisa alguma: filas, instituições, famílias, professores, aos outros enfim. Muito pelo contrário, segundo os dados do Disque 100, serviço de disque denúncia criado em 2011 pela Secretaria dos Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, os filhos são os maiores agressores de idosos. Depois deles, pasmem, vêm os netos. Isso sem contar nos inúmeros casos em que a morte acaba sendo uma das consequências.
Há que se pensar qual o destino desse trem desgovernado de benefícios sem consequências. Em cada vale, auxílio, bolsa, ajuda, milhares podem se perder e nunca mais se encontrar. E a mídia parece apenas noticiar com cara de paisagem. No fundo do poço poderá não haver mais água, mas lama na boca dos brasileiros. E de histórias enlameadas já estamos fartos.
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Marcos Linhares é jornalista, escritor e membro da Associação Brasileira de Consultores Políticos (ABCOP)