Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um não-lugar jornalístico

Alguns diriam: “Sempre foi assim”. Diriam mais: “A grande mídia sempre refletiu os interesses hegemônicos das classes dominantes”. Outros, entre os quais me alinho, diriam que mesmo sendo verdadeira esta assertiva houve um tempo, mais precisamente, antes de Thatcher e Reagan, que o jornalismo tinha o que se pode chamar de um compromisso maior com o espírito público, entendendo este conceito nos termos estabelecidos por Hegel. Conceito que remete para um estado “racional” capitalista, uma instância que “exigia o sacrifício das satisfações individuais e arbitrárias que são próprias das finalidades subjetivas; mas reconhece o direito de obter tais satisfações no cumprimento do dever e somente nele. Nisso reside a união de interesse particular e interesse geral que constitui o conceito de Estado”.

Com o advento do neoliberalismo, torna-se hegemônico um modelo social, econômico e político que tira de cena a figura do interesse geral e investe “todas as fichas” no interesse individual como o único legitimo após o fim do socialismo real e a queda do muro de Berlim. A imprensa ocidental, refletindo estes novos valores “soltou a franga” e aderiu maciçamente ao discurso que Ignacio Ramonet, diretor do jornal francês Le Monde diplomatique, denominou de pensamento único. Ressalte-se que não foi só a imprensa. O contingente de vira-casacas que passou da esquerda, com a perda de parte de seu glamour, para a direita foi impressionante. Impressionante, também, a velocidade da adesão ao novo credo.

Franklin Martins em esclarecedora entrevista de 04/06/2013, reprisada em 25/02/2014, em comemoração aos 15 anos do Observatório da Imprensa, comentando a crise do jornalismo escrito e falado, disse que o interesse do leitor ou telespectador é ser surpreendido e isso não acontece hoje. Digo eu: seja porque o sujeito já leu na internet sobre os fatos ocorridos antes de saírem no jornal, na revista e na televisão, e assim sabe de antemão o que vai ser dito ou comentado, seja porque você pode comprar um jornalão ou ver um noticiário televisivo aqui, nos EUA ou na Europa que você terá o mesmo enquadramento (forma) nas manchetes e chamadas e no conteúdo, isto é, parece que foi escrito pela mesma pessoa.

Mesmo jornal, mesma revista, mesmo noticiário

Tudo converge para um mantra comum de que os problemas sociais, políticos e econômicos decorrem dos gastos públicos, da crítica aos serviços de natureza publica (energia, comunicação, saneamento, saúde, segurança) quando públicos e o silencio crítico e escamoteamento da realidade quando estes passam a ser privatizados, da falta de flexibilização da legislação trabalhista, da burocracia estatal, dos impostos, enfim do Estado que devia ser mínimo para liberar a capacidade empreendedora e virtuosa da iniciativa privada. Diria mais: instaura- se uma linha editorial padrão universal, um não-lugar jornalístico, se adotarmos as linhas mestras daquele conceito que remete para aeroportos, shoppings, isto é, lugares estandardizados, iguais, independentes da cidade, do estado, do país, onde estejam.

Neste afã da imposição do novo credo neoliberal nas redações de jornais e noticiários de TV atropelam-se valores que até antes da era Reagan e Thatcher eram tidos como importantes no mundo ocidental. Valores de centro-esquerda, sociais democráticos que nos países do capitalismo avançado estabeleciam como meta um governo para 70% da população e, em um piscar de olhos, foram rebaixados para 30% ou menos. A julgar pela rapidez com que foram abandonados, só tinham razão de ser, de existir, como contrapeso ao socialismo real. Estou me referindo ao welfare state que, mesmo não agradando à direita – não agradava, também, a nada grande parte da esquerda (destaque para anarquistas e marxistas ortodoxos), mas a questão em pauta é a recepção ideológica dos conservadores liberais que aceitavam as regras do jogo social-democrático, pois, mesmo quando se tornavam governo, por respeito ou temor, deixavam intocados avanços sociais na legislação trabalhista, no sistema de saúde e na previdência social, entre outros setores. Estes valores, portanto, extrapolavam a dicotomia esquerda/direita e englobavam setores importantes desta última.

Disso resulta uma grande mídia, nos países do capitalismo avançado, da periferia e nos que pertenciam antes ao bloco socialista, atuando como ponta de lança deste processo comprometido com um modelo de sociedade mais próximo do passado do que do futuro se olharmos sob a ótica da relação capital/trabalho. Não bastasse este retrocesso civilizatório que põe em risco avanços sociais e democráticos ou por causa disso esta guinada ideológica envolve no espaço midiático, a defesa, desta nova hegemonia, através de manipulações mis, da deturpação de fatos, da adoção de um discurso maniqueísta sem nenhum compromisso com a realidade – o maniqueísmo é tanto que valida a critica irônica e sagaz que alguns fazem a grande mídia afirmando que hoje ela é tão independente que independe dos fatos, o mínimo a se exigir de uma imprensa –, a desconstrução e difamação dos atores sociais, políticos e econômicos que divergem deste pensamento, sem falar do espaço nobre hoje ocupado por brucutus de direita nos jornais e na TV.

Agregue-se a isso alguma cor local, um espaço não muito grande para opiniões discordantes para disfarçar e passar a impressão de que existe ali espaço para a pluralidade de ideias. Para ser justo, os jornais escritos têm esta política minimamente plural, mesmo que restrito as colunas de opinião. Na televisão este espaço é infinitamente menor e, muitas vezes, inexiste – e temos assim, aqui e alhures, o mesmo jornal, a mesma revista, o mesmo noticiário televisivo facilmente identificável por qualquer um medianamente esclarecido.

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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS