O principal assunto na mídia alemã o longo da semana passada foi o julgamento de Uli Hoeneß, inseparável da história emblemática do Bayern de Munique. Além de jogador do clube, aos 27 anos Hoeneß se tornou empresário e responsável pela compra e venda de jogadores. Em 2009, quando sucedeu Franz Beckenbauer na presidência do clube, sua carreira chegou ao ápice incluindo a função de conselheiro não-oficial da chanceler Angela Merkel em assuntos relacionados ao futebol. Em abril de 2013, com uma reportagem da revista Focus, o “Godfather” do futebol alemão – como também suas obras, incluindo as de natureza social –, começariam a ser desmontados.
Fechando a pauta
No programa do jornalista Markus Lanz na TV aberta ZDF, Jörg Quoos, redator-chefe da Focus explica o furo jornalístico que ele considera o ápice de sua carreira de mais de 20 anos:
“Na época, eu ocupava o cargo de redator-chefe havia três meses. Estávamos quase terminando uma imensa matéria sobre o Bayern, na época prestes a conquistar o campeonato alemão (Bundesliga). O título da matéria era ‘FC Bayern – Supermacht’ (FCBayern- Todo poderoso), onde delineávamos a receita do sucesso, criada por Uli Hoeneß, com o qual também havíamos feito uma abrangente entrevista. Era sexta-feira, 15 de abril, dia que jamais esquecerei; final de expediente e estávamos prestes a fechar a matéria. Nesse momento, um informante que conheço pessoalmente e no qual deposito total confiança, me avisou: ‘O Hoeneß tem uma conta bancária secreta na Suíça. Houve uma autodelação (Selbstanzeige, em alemão) por parte dele próprio (tentando evitar o processo) e foi aberto um inquérito pela promotoria’. Com essa história na mesa, é inevitável o questionamento de um redator-chefe: ‘Eu prossigo com a matéria quase pronta ou investigo a outra pauta?’ Acabamos por decidir publicar a matéria, que inclusive vendeu muito bem, ao mesmo tempo em que acionamos o nosso departamento de jornalismo investigativo para apurar os novos dados. Fizemos questão de somente publicar a matéria quando tivéssemos detalhes concretos.”
Vale lembrar que da perspectiva do norte do país, Uli Hoeneß gozava de um status de chefe de Estado; e, como diz Quoos: “Para alguns, mais poderoso do que a imagem do Papa ”.
Mídia carniceira
A mídia alemã inteira acompanhou o julgamento recheado de suspense. O valor sonegado, que num primeiro momento foi estimado em 3,5 milhões de euros, aumentava consideravelmente durante o julgamento, em parte como estratégia da defesa que alegou que os dados dos bancos suíços teriam chegado somente poucos dias antes do início do julgamento, em parte devido ao depoimento de uma funcionária da Secretaria da Fazenda, que chegou a valores bem mais altos do que anteriormente divulgados pela defesa de Hoeneß.
O tablóide Bild, outrora árduo admirador do über-empresário, o fritou no espeto para todo o país em formato live-stream durante todo o julgamento, culminando com a manchete de sexta-feira (14/3), depois do anúncio da sentença de 3 anos e 6 meses de prisão, mas que só entrará em vigor na semana da Páscoa. Durante toda a noite de quinta-feira, a mídia era frenética no regozijo e em especulações, se Hoeneß teimaria em continuar presidente do Bayern e se entraria com recurso judicial para evitar ter que ir para a cadeia por evasão fiscal de, ao todo, 28,5 milhões de euros.
>> “Quando Honeß finalmente vai pra cadeia?” (veja aqui).
Nas primeiras horas da sexta-feira, foi o próprio Hoeneß que deu fim às especulações. Em nota à imprensa logo pela manhã, ele divulgou que depois de conversa em família teria decidido não recorrer à decisão do tribunal e aceitar a pena de 3 anos e 6 meses, além de renunciar a todos os cargos concernentes ao Bayern de Munique, onde Hoeneß também era presidente do conselho da Bayern München AG.
A cobertura midiática das mídias mais e menos sérias espelhou o aspecto carniceiro que envolve toda a imprensa alemã. Até mesmo o respeitadíssimo Süddeutsche Zeitung, com a matriz da redação diretamente em Munique, não resistiu à sedução de desnudar em detalhes etapas da vida de Hoeneß, questionando exaustivamente aquilo que em língua alemã se denomina de “Lebenswerk”, que soma os feitos de toda uma vida. No YouTube, o número de charges aumentava de hora em hora, sem falar nas reportagens entrevistando guardas da penitenciária sobre detalhes do dia a dia de um presidiário. De forma previsível, um dos guardas falou o que os espectadores queriam ouvir: “O Hoeneß vai ser tratado como um presidiário qualquer”, pincelando a telinha com a sua versão da realidade (ver aqui).
De repente os tempos gloriosos de Hoeneß como jogador do Bayern e tudo o que ele fez para o time não têm mais valor algum. Não é exagerado afirmar que a cobertura em geral foi no melhor estilo de “joga a pedra na Geni!”, igualmente demasiado, de polêmica barata e não menos perigoso. É preciso ter nervos de aço para suportar o que o jargão midiático chama de “demolição pública”, sem que isso acabe, literalmente, com a vida do demolido.
Condenado antes do julgamento
Esse mesmo fenômeno ocorreu com o socialdemocrata Sebastian Edathy, que supostamente teria comprado fotos de crianças e jovens do sexo masculino na internet. Mesmo que a promotoria pública veja a “simples compra de fotos” como “irrelevante sob o aspecto criminal”, o então respeitado membro do Parlamento alemão, líder da comissão parlamentar de inquérito envolvendo o processo NSU (ainda sendo julgado), em poucos dias Edathy perdeu a imunidade parlamentar, não podia mais aparecer em sua casa e se escondeu no “sul da Europa”, como noticiou no domingo (16/3) em entrevista exclusiva a edição digital da revista Spiegel, a primeira depois de ter estourado o escândalo em fevereiro último. Mesmo que os mecanismos do Estado de Direito terem sido acionados sem delonga, e na Alemanha eles sempre funcionam muito bem, Edathy ainda recebe ameaças de morte e declarou na entrevista: “Pensei em ir ao meu apartamento pegar as correspondências e resolver algumas pendências pessoais, mas meu vizinho me informou ao telefone que três jornalistas estão plantados em frente à minha porta, por isso eu desisti de passar por lá”.
Os casos Hoeneß e Edathy mostram uma nova qualidade da cobertura midiática e seu aspecto vampiresco e carniceiro, e a mistura perigosa do que é o público e o privado. No alto estágio de digitalização em que nos encontramos, isso talvez seja um desenvolvimento inevitável, mas não menos amedrontador.
Um exemplo pessoal há pouco tempo ratificou ainda mais essa tese de que o privado virou público, e que o que eu chamaria de nudez cibernética, voluntária ou não, acaba sendo solo fértil para justificativa de atos infames e antiéticos. No último dia da Feira Internacional de Turismo em Berlim, eu me dei o direito de ir ao pavilhão brasileiro como uma visitante comum. Porque o meu celular negou fogo na bateria, eu pedi um fotógrafo alemão, conhecido meu há mais de 20 anos, para eternizar um momento de descontração meu com o Fuleco, o mascote da Copa com o nome infeliz, mas que esbanjou simpatia na feira. Logo depois de tiradas as fotos, ele mesmo avisou: “Não vai postar no Facebook!”, o que me deu segurança de que ele entendera a minha intuição de manter essas fotos em caráter privado. Dois dias depois, recebo um e-mail de um colega alemão se mostrando surpreso em ter visto a minha foto na página da feira. Mesmo a foto sendo retirada em menos de uma hora depois do meu conhecimento, ela permaneceu durante 20 horas no site e eu não tenho controle nenhum de onde essa foto pode ter ido parar. Quando exigi a retirada da foto, o fotógrafo argumentou: “Ah, foi o pessoal da redação, eles com certeza, acharam a foto bonita”, num momento de amnésia ética total.
Talvez essa postura seja resultante da pressão a que fotógrafos contratados estão submetidos para mostrar serviço. Fato é que o direito à privacidade ficou pelo caminho. Toda a nudez cibernética (por mínima que seja) será castigada, vide o voyeurismo infame sofrido na semana passada pela atriz Lucélia Santos, que cometeu o “pecado” de fazer uso do transporte público no Rio de Janeiro. Como se isso não fosse punição suficiente, uma passageira a fotografou oferecendo solo fértil para os carniceiros de plantão no mundo cibernético.
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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com