Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Objeto desidentificado

Não sei como estará a situação no sábado, quando este artigo for publicado. Na quinta-feira, em que escrevo, as notícias desencontradas continuam não dando conta do paradeiro do Boeing 777 da Malaysia Airlines. É desse lugar que falo, ou melhor, é disso: do avião que está fora do ar, em todos os sentidos. Falo do apagão ao longo do qual não conseguimos mentalizar o destino das 239 pessoas, a perplexidade dos amigos e parentes, a dimensão humana, em suma, do acontecimento. Pois há alguma coisa particularmente vertiginosa no acidente em suspenso, na catástrofe entre parênteses – essa que já aconteceu, ao mesmo tempo em que ainda não aconteceu. Muitos casos de aviões desaparecidos sem deixar traço são relatados na história da aviação como insolúveis. Mas, além de não serem aviões de máximo porte, como é o caso agora, não sumiram do mapa numa época, como a nossa, em que se fechou um cerco sobre tudo quanto existe, tornando inconcebível que um objeto, qualquer que seja, escape, ainda que por um momento, ao controle e à captura.

Por isso mesmo, é diferente, hoje, o sentido desse vazio e desse hiato. No tempo em que as tragédias reais são denegadas, em que o oceano não é mais tido como inescrutável, em que a morte não tem permissão para fazer o seu trabalho, o avião desaparecido grita aos céus, mais do que como um índice da pequenez humana, como uma heresia frente a essa religião contemporânea que podemos chamar de tecnocapitalismo. Desde o celular de qualquer pessoa, capaz de fotografar e pôr no mundo qualquer acontecimento imediato, passando pelas câmeras vigilantes espalhadas por toda parte, pela onipresença dos meios digitais e pelo alcance fulminante das máquinas de guerra, um aparato intensivo e extensivo de vigilância pressupõe que tudo está dentro do sistema. Que não o esteja, que não possa ser rastreado, configura uma espécie de escândalo novo e infinito enquanto dure.

Por isso, também, as especulações e a queda das versões, uma a uma, soam patéticas, junto com o bater de cabeças de empresas, autoridades estatais, organismos internacionais envolvidos, técnicos, financeiros, militares. Elas são a tentativa de cobrir o quanto antes com uma narrativa verossímil o até agora insondável sumiço, e o rombo que ele escancara na ordem do mundo. Pois enquanto o jato não estiver em lugar nenhum do sistema estará aberto o perigoso precedente a coisas que não estejam em lugar nenhum do sistema. Quem não fantasiou, mesmo que por um instante, quase sem triscar a consciência, estar nesse avião, conhecer a outra dimensão prometida pela sua errância, seja ela a ilha da utopia, a morte sem dor (já que ausentes os sinais concretos da queda) ou, principalmente, o gozo de estar fora do alcance da grande máquina?

Fantasia do controle

Descartada a hipótese de terrorismo (os iranianos com passaportes falsos estariam tentando exílio na Europa através de “quadrilhas de contrabando humano”), desqualificada a localização da mancha de óleo, inconclusivos os fragmentos registrados por um satélite chinês, divergentes as informações sobre as mudanças de rota do avião, aventadas as possibilidades de acontecimentos extremos dentro da aeronave, lutas, suicídio, explosão, falha de turbinas, turbulências em céu de brigadeiro, ruptura no ar e queda súbita de pressão, o mais recente indício vem do comandante-chefe da Força Aérea Real Malaia, dizendo que radares militares detectaram um “objeto não identificado” no norte do Estreito de Malaca cerca de uma hora depois do desaparecimento, embora não se possa “afirmar nem excluir” que se tratasse da aeronave em questão, implicando isso, apenas, em mais uma ampliação do raio das buscas.

A expressão “objeto não identificado” vem, aqui, bem a propósito. Jung achava que os relatos sobre discos voadores deveriam ser interpretados como sinais do inconsciente coletivo: com sua forma esférica, à maneira de lentilhas celestes, os discos eram um apelo simbólico à integração psíquica da Humanidade no pós-guerra. Roland Barthes interpretou a mitologia dos marcianos, num texto delicioso, como epifenômeno da Guerra Fria. Um trotskista argentino, e maluco, profetizava que os extraterrestres eram a aparição no presente da sociedade socialista do futuro. (Será por isso que eles “compareceram” tanto entre os anos 1950 e 70, ou início dos 80, que é de quando data o “ET”, e depois simplesmente “desistiram” de nós?)

O avião sumido é, até prova em contrário, o objeto desidentificado, o avesso do disco voador. Este figurava a aparição do que não há, como promessa de sentido no horizonte das teleologias. Aquele é a desaparição do que há, o blecaute de sentido pondo em questão, mesmo que por um momento, a fantasia de controle absoluto que domina o mundo.

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José Miguel Wisnik é colunista do Globo