Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quem deve ter o direito de pensar?

A imprensa, de uma maneira quase beirando a generalidade, mobilizou-se através de suas diversas formas de expressão, a partir da terça feira (8/4), na veiculação de notícias correspondentes à prova de filosofia que foi aplicada para cerca de 400 alunos do ensino médio da rede pública de educação em Taguatinga, cidade-satélite de Brasília, comentando que a referida prova tinha gerado uma grande polêmica nas redes sociais pelo fato de ter chamado a funkeira Valeska Popozuda de “pensadora contemporânea”, pois o enunciado da questão de múltipla escolha trazia “segundo a grande pensadora contemporânea, Valeska Popozuda, se bater de frente”.

O recorte da prova, que fora compartilhado nas redes sociais, gerou milhões de comentários, em sua grande maioria repudiando o enunciado da prova, atacando a educação brasileira, ofendendo o professor e, principalmente, criticando a cantora e dançarina de funk – estilo musical que tem seu maior público em localidades de periferia das grandes cidades e que tem ganhado enorme projeção no cenário da música brasileira. Nessa polêmica, uma questão que pede reflexão é a seguinte: “Quem deve ter o direito de pensar?”

Sobre esse acontecimento discursivo, compreendemos com o filósofo italiano Antonio Gramsci que “é impossível pensar em um indivíduo que não pense e que pensar é próprio do homem (e mulheres) (a menos que se trate de um caso de idiotia patológica)”. Na mesma direção, segundo o professor Luciano Oliveira, ainda na visão desse filósofo, uma evidência que demonstraria que todos os indivíduos podem ser filósofos é a língua que não é usada de maneira vazia. Ou seja, para ele, quando fazemos uso da língua estamos realizando uma atividade intelectual e essa se expressa a partir das escolhas lexicais de acordo com o sentido que pretendemos veicular. Nessa linha de raciocínio, faz-se importante refletir quais seriam os sentidos propostos na letra da música “Beijim no ombro”, de Valeska, e na questão de prova motivo da polêmica.

“Ser vadia é ser livre”

Se levarmos a reflexão por essa via, entenderemos que as classes subalternizadas precisam de seus intelectuais e que, sendo assim, faz-se necessário o questionamento se não seria Valeska membro dessas classes e, desse modo, assumiria o papel de pensadora. Em sua música, a cantora aborda uma linguagem informal, ou seja, uma linguagem que se aproxima da linguagem do povo simples ou “povo do morro”, de onde ela vem. Ademais, é também notório que seu vídeoclip (que, publicado na internet, vem desde janeiro fazendo sucesso) de simples não tem nada. Ao contrário, não estaria marcando o desejo de ostentação tão pregado na atualidade? Estaria Valeska expressando o desejo de “ter”, tão valorizado na sociedade capitalista? Talvez.

Em uma entrevista divulgada pela revista Época (11/4), a cantora foi questionada em diversos assuntos. Discutiu e se posicionou sobre estupro, sobre liberdade feminina, sobre formas de preconceito sofridas pelas mulheres em nossa sociedade e sobre temas tidos como polêmicos na atualidade, como aborto. Sobre o último tópico expressou: “Não condeno quem fez e cada um tem o poder e o livre-arbítrio de fazer o que quiser de sua vida.”

Outro assunto que nos chama atenção é seu posicionamento referente ao movimento Marcha das Vadias, pois, para ela, “ser vadia é ser livre”. Dessa forma, percebemos que a cantora demonstrou, nos diversos comentários sobre a polêmica, mais coerência que muitos acadêmicos que circulam pelas universidades brasileiras, que assumem posturas preconceituosas de enorme desrespeito para com o Outro.

Janela de preconceitos

Para além das ideias, a cantora também é dançarina. Sobre isso, sabe-se que a dança não é simplesmente um ato de “balançar a bunda” ou as “cadeiras”, como se diz genericamente. Ou será que só podemos considerar como dança apenas a valsa e/ou o balet? Por que não enxergamos as danças da periferia como relevantes? Até onde vai a fronteira entre o clássico e o popular? A linguista Eni Orlandi afirma que toda expressão corporal tem seu sentido simbólico e é lugar de invenção e interpretação ideológica. Logo, podemos entender que o funk é uma dança que traz um jogo coreográfico que muitas vezes, de forma preconceituosa, é considerado vulgar. Essa discriminação ronda o campo da expressão da liberdade feminina, e, por isso, não é difícil mulheres funkeiras serem tachadas de “vadias”. Ao fazer uso desse ritmo musical e sua linguagem corporal, Valeska expressa sua liberdade e subverte os valores de uma sociedade machista e sexista e, assim, em sua escolha, possibilita que o subalterno tenha capacidade de criação e de elaboração de conceitos próprios, demarcando que as classes populares são capazes de fazer sua história.

Diante do que foi apresentado até agora, voltemos a refletir sobre a questão central de nosso texto: “Quem tem o direito de pensar”? Eu digo que Valeska tem, que ela pode sim ser chamada de “pensadora contemporânea”. Nada impede que seja confirmada com tal. Isso fica claro em sua tomada de posição diante dos assuntos que lhes foram questionados, visto que para cada um a cantora demonstrou seu posicionamento. O preconceito de classe, em sua reprodução, tem buscado a todo custo deixar os indivíduos das classes subalternas de fora do processo de construção histórica como se esses não desempenhassem um papel relevante em seu contexto. Valeska, ao se posicionar, e ser reconhecida pela mídia e pelo seu público como artista demarca sua posição no mundo. Hoje, os subalternos não precisam mais dos intelectuais de outrora para registrar sua existência – eles mesmos estão buscando fazer isso. É essa busca por um lugar na historia, por uma mudança social e, principalmente, pela (re) significação de “velhos conceitos”. Valeska pode e deve ser vista como pensadora, assim como qualquer indivíduo das classes subalternizadas que não aceitem sua condição de excluído.

É uma pena que em pleno século 21 os ditos “estudados” ainda estejam vendo as pessoas, como diria o poeta Manoel de Barros, “como pessoas razoáveis”, olhando as manifestações do subalterno da janela eurocêntrica recheada de preconceitos. Será que em nossa maioria somos tão “clássicos” a ponto de só aceitarmos o erudito? O subalterno também tem a capacidade de se posicionar no mundo e elaborar novos conceitos e, assim, serem sujeitos autônomos de sua cultura.

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Daniel Alves dos Santos é estudante de História da Universidade Estadual de Alagoas