Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

À dinamarquesa

Existe uma piada no meio jornalístico que é bem capaz de você, mesmo não sendo jornalista, conhecê-la. Apesar disso, vale a pena contá-la mais uma vez para que se entenda o espírito da coisa. Um jovem, recém-contratado por um grande jornal, recebe sua primeira pauta: cobrir a inauguração de um circo no subúrbio. Quando chegou lá, um incêndio de grandes proporções – aqui vale um comentário entre travessões, grandes incêndios, em linguagem jornalística, são sempre incêndios de grandes proporções – consumia a lona já armada, ameaçava os animais , deixava os artistas desesperados. O jovem jornalista voltou para a redação com um N.F. (Aqui vou explicar entre parênteses: N.F. é a expressão jornalística para “nada feito”, usada quando a pauta não dá certo.) A inauguração do circo, motivo da saída do repórter, não aconteceu. Ele voltou para a redação sem matéria, não percebendo que o incêndio era uma notícia mais importante ainda.

Esta velha piada não sai da minha cabeça desde que li as notícias sobre Mikkel Jensen, o intrépido jornalista dinamarquês que desistiu de Cobrir a Copa do Mundo porque descobriu, em Fortaleza, “que todos os projetos e mudanças são por causa de pessoas como eu – um gringo – e também uma parte da imprensa internacional. Eu sou um cara usado para impressionar.”

Tempo perdido

Jensen estava no Brasil há seis meses. Veio realizar um velho sonho: cobrir a Copa do Brasil. Não se sabe o que ele fez por aqui nos cinco primeiros meses da estadia, mas, em março, resolveu conhecer Fortaleza, como relata em sua página no Facebook: “Falei com algumas pessoas que me colocaram em contato com crianças de rua e fiquei sabendo que algumas estão desaparecidas. Muitas vezes, são mortas quando estão dormindo à noite em área com muitos turistas. Por quê? Para deixar a cidade limpa para os gringos e a imprensa internacional? Por causa de mim?”

Decepcionado, Mikkel Jensen jogou tudo para o alto e voltou para a Dinamarca. Já estranhei o fato de Jensen chegar ao Brasil com tanta antecedência. Nas Copas que cobri, eu sempre fui da linha de frente, isto é, chegava junto com a primeira turma dos enviados pelo jornal. Quer dizer que eu chegava no país-sede… 30 dias antes do jogo de abertura. O dinamarquês chegou aqui seis meses antes? Resolveu tirar férias antes de começar a trabalhar? No seu texto no Facebook só há uma dica de por que ele escolheu Fortaleza para atuar: é “a cidade mais violenta a receber um jogo de Copa do Mundo até hoje”. E aí, quando ele encontra a violência, resolve ir embora? Agora, me explica, o sujeito está diante da maior reportagem de sua vida, uma denúncia que, bem apurada, poderia lhe dar todos os prêmios de jornalismo de seu país, e ele volta para casa porque não quer ser o motivo da “limpeza” de Fortaleza?

Estou achando difícil acreditar que Mikkel Jensen veio ao Brasil para cobrir a Copa. Não entendi bem por que Jensen escolheu Fortaleza como principal cidade de sua cobertura. Pode até ser que as reportagens que Jensen apurou por aqui ainda venham a ser publicadas, mas se, depois de seis meses de Brasil, tudo que ele tem para contar é o que está no texto vago e sem provas que deixou na internet, não dá para confiar no jornalismo à dinamarquesa.

Jensen diz que passou dois anos e meio se preparando para a cobertura da Copa no Brasil. Aprendeu português, visitou o país, comprou um ingresso para o jogo entre França e Equador. Quanta perda de tempo!

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O jornalista que não era rosquinha

Escrevi no domingo [ver acima] sobre o faro pouco jornalístico de Mikkel Jensen, o tal repórter dinamarquês que desistiu de cobrir a Copa do Mundo porque Fortaleza é muito violenta e grupos de extermínio estão matando crianças por lá. Foi o bastante para receber alguns e-mails mais ou menos como o de Vicente Lou: “Mikkel Jensen não existe. A página dele é mais uma das inúmeras páginas falsas do Facebook.”

A denúncia me levou aos meus primeiros tempos na internet. Não fui um navegante de primeira hora. Custei a me curvar aos encantos da rede. Mas logo depois de comprar um Eudora para ter meu e-mail particular, passar a consultar com assiduidade o site de buscas Altavista e formar uma pequena biblioteca com livros e revistas que traziam endereços eletrônicos interessantes, recebi um e-mail que me mobilizou. Era uma receita de rosquinha enviada por um americano. Ele tinha sido enganado na cafeteria de uma loja de departamentos poderosa de Los Angeles. Não me lembro mais da história. Sei que ele comprara um cachecol por um preço camarada e foi tomar um café com a famosa rosquinha da cafeteria da loja. A conta foi assustadora. Ludibriado, o sujeito pagou cerca de 100 dólares pela rosquinha. Entrou na Justiça, então, para receber a receita de tão caro comestível. Conseguiu. E, a partir daí, passou a distribuir por e-mail para o mundo inteiro a receita da rosquinha. Ninguém mais precisaria ser enganado comprando a rosquinha na tal cafeteria. Ela podia ser feita em casa ou, pior ainda, na padaria de qualquer esquina por preços bem mais em conta.

O que foi que eu fiz? Publiquei a receita na minha coluna comentando o poder da internet. Como era importante saber que um consumidor ludibriado poderia fazer valer seus direitos através desse instrumento poderoso. Era uma lição de cidadania. E eu passei algumas horas orgulhoso por estar colaborando com a campanha do consumidor enganado. Foi aí que recebi um e-mail da Cora Rónai que transformou meu orgulho em vergonha. Ela conhecia a história. Todos acostumados a navegar na internet conheciam a história. Era mentira. Não existia rosquinha de 100 dólares, não existia consumidor enganado, não existia nem cafeteria na tal loja de departamentos. Foi o primeiro golpe que sofri na rede. E acreditava que, com o passar do tempo, tinha aprendido a identificar esse tipo de golpe. Até domingo, quando resolvi comentar a história do jornalista dinamarquês.

Então ele não existe? É uma rosquinha? Toda a imprensa caiu no golpe do jornalista indignado? Antes de me retratar, resolvi fazer o que deveria ter feito desde o início. Pesquisar a existência de Mikkel Jensen. Achei um modelo tatuado, um fotógrafo de moda e… um jornalista dinamarquês que deu uma entrevista para a Tribuna do Ceará. Na gravação, disponível no site do jornal, a repórter pergunta se ele teve medo de morrer em Fortaleza. A resposta é clara: “Tive medo de morrer, com certeza, porque é muito perigoso . Achei muito ruim, muita pobreza, tive medo de fazer contato com oficiais, com políticos. Muita gente falou para mim que era perigoso fazer isso, me identificar” A história toda é muito estranha, mas Mikkel Jensen existe!

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Artur Xexéo é colunista do Globo