Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Traço passado a limpo

Um dos mais destacados desenhistas da história da imprensa no Brasil, o maranhense Fortuna, cofundador de O Pasquim, tem parte de sua obra reunida em livro que recorda os 20 anos de sua morte. Nele, 335 desenhos repassam os mais de 40 anos em que seu humor e sua visão crítica marcaram o jornalismo no país.

Considerado “o cartunista dos cartunistas”, estampando sua marca no melhor jornalismo produzido no Brasil na segunda metade do século 20, Fortuna (1931-94) era um perfeccionista. Mais: um obsessivo. “Procuro desenhar como se estivesse satisfazendo uma necessidade fisiológica”, dizia.

Seu filho, o poeta e diplomata Felipe Fortuna, lembra que, se o pai estava no estúdio, fazia-se um silêncio de mosteiro na casa enquanto ele desenhava – com palitos de fósforo, café na água para colorir o fundo do papel, as tintas Suvinil destinavam-se às capas de revista. Só às vezes, no meio da noite, escutava-se o matraquear da máquina de escrever.

Os amigos artistas da imprensa – que, como ele, brigavam contra os prazos apertados – sabiam e invejavam: uma vez definida a piada, ou imaginada a charge, ou bolado o cartum, Fortuna levava dias ou semanas para apresentar o desenho definitivo.

“Sofria como Flaubert para pôr o ponto final”, define Jaguar. “Na verdade, ele se divertia na hora de modificar o traço de um nariz, a posição da boca, algum braço cruzado ou entrelaçado. Punha o desenho a certa distância, em cima de um sofá, por exemplo, e ficava horas a observá-lo. Não adiantava dizer a ele que nenhum leitor de jornal repetiria aquele ponto de observação”, conta Felipe.

Mas o ritual de observação não lhe bastava. Antes de finalmente mandar o desenho para a gráfica, mostrava-o ao porteiro do prédio ou o faxineiro da Redação, pedindo uma última opinião, mesmo que sempre recebesse respostas protocolares – “Tá ótimo, seu Fortuna!” E, depois de publicado, continuava insistindo em testar seu humor. Exibia a página a todo mundo e esperava uma reação. Só ria quando os outros riam.

“O resultado era excepcional. Aquela velha história: como fazer o simples é difícil”, avalia o caricaturista e pesquisador Cássio Loredano, que organizou o recém-lançado álbum cujo título justamente é Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas [Edições Pinakotheke, 256 páginas, R$ 89,00].

Para lembrar os 20 anos de sua morte – um infarto fulminante que o surpreendeu em plena atividade, aos 63 anos –, a obra reúne 335 desenhos, a maioria inédita em livro, repassando a trajetória iniciada na segunda metade dos anos 1940. Além do prefácio de Ferreira Gullar, a bem cuidada edição traz cronologia, textos de Antonio Callado, Felipe Fortuna, Jaguar, Álvaro de Sá e Pietro Maria Bardi, uma rara entrevista que Fortuna deu à revista Vozes em 1970 e um anexo com fotos.

“A maior característica é a limpeza e a pureza do traço, em qualquer que fosse o registro da mensagem, lírica ou política”, comenta Loredano, que, a par de ter selecionado o material, contextualiza e analisa no livro cada uma das fases do caricaturista.

“Na obra de Fortuna, é notável a aquisição de um estilo contundente: sua charge ou seu cartum não se faz reconhecer só pela expressão do desenho, mas também pelo texto”, escreve Felipe, um dos quatro herdeiros e curador da obra do pai.

“Todo humorista insiste em investigar a lógica, em desvendar os desacertos existentes naquilo que aparenta certeza ou verdade. Fortuna adiciona nonsense às experiências mais cotidianas, de tal modo que a possível inversão de uma situação não a faz voltar a um estado de normalidade. Pegue-se, por exemplo, o cartum dos mendigos que trazem chapéus na mão com os quais pedem dinheiro (à exceção de um deles). É justamente o mendigo sem chapéu que pede a quem passa: ‘Um chapeuzinho, pelo amor de Deus!’ Isso, sim, é a extrema miséria. O riso surge da constatação de que o mendigo pede um instrumento de trabalho para que possa mendigar”, continua.

O Pagãozinho

Reginaldo José de Azevedo Fortuna nasceu no dia 21 de agosto de 1931, em São Luís do Maranhão. Com a morte do pai, sua família transferiu-se para o Rio, indo morar na Vila Ruy Barbosa, travessa Chiquita, na rua dos Inválidos, centro da cidade.

Ali, aos 16 anos, começou a fazer revistas de histórias em quadrinhos à mão. Criou a historieta Jack, o Gostosão e seis números da revista O Pagãozinho, tudo feito domesticamente, como se estivesse treinando para a produção que viria a seguir. No Colégio da Mabe, na rua do Riachuelo, dividiu carteiras e canetas com Ziraldo.

A estreia profissional se deu aos 17 anos, na revista Sesinho, publicação infantil do Serviço Social da Indústria (Sesi). Sob o pseudônimo de Ricardo Forte, fez ilustrações e criou a seção “O Caçula da Cinelândia”, com desenhos humorísticos sobre filmes – o cinema teve grande impacto na sua formação. “O estilo variava muito, como se o autor ainda testasse técnicas e formas, em busca de um traço pessoal”, diz Loredano.

Em A Cigarra, revista dos Diários Associados, e por sugestão de Millôr Fernandes, o desenhista virou Fortuna, “que mais parece pseudônimo que sobrenome”, recorda Jaguar. Foi a primeira revista brasileira a publicar cartuns soltos e Fortuna era o seu único cartunista. Ao adotar a impressão em rotogravura, que permitia maior precisão, ele começou a experimentar a inserção de fotos e rabiscos à margem das páginas, muitas das quais traziam a própria imagem do humorista. Ali, no fim dos anos 1950, nasceu não só um nom de plume, mas também um estilo.

Na Revista da Semana, na qual trabalhou de 1954 a 1957, anunciou seu interesse pelos signos não verbais e logotipos e, momentaneamente, pelo cartum sem palavras.

O arquiteto e cartunista Claudius Ceccon conheceu-o nesse tempo: “Eu tinha 16 anos e trabalhava como auxiliar de paginação na revista O Cruzeiro. Apesar de ainda jovem, Fortuna já estava pronto, maduro. Era dono de um desenho moderno, de humor cortante, aliando sofisticação do traço e da palavra com resultados que te faziam rir para dentro, refletir, render-se a uma genialidade aparentemente tão espontânea.”

Pif-Paf

Um novo caminho se abre com a revista Pif-Paf, fundada em 1964 por Millôr, e que durou apenas oito números. O suficiente, no entanto, para que Fortuna celebrizasse nela ao menos dois desenhos, primeiras imagens da ditadura no Brasil: o militar que desembainha a espada para apontar o lápis e o militar que despacha em seu gabinete montado a cavalo.

Não à toa, no prefácio do livro Hay Gobierno, também de 1964, feito em parceria com Jaguar e Claudius, Paulo Francis escreve: “Fortuna me parece o mais político. Seu desenho é sombrio, às vezes fantasmagórico, criando a atmosfera ideal, pelo contraste, para seu ponto de ataque’, sempre direto e conciso.”

Era o que Antonio Callado – que convidou Fortuna para ser chargista diário do Correio da Manhã, acompanhando e criticando o regime militar até a instalação do AI-5 – definiu como “cartum editorial”.

No prefácio de Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas, Ferreira Gullar explica que as charges, mais tarde reunidas no livro Aberto para Balanço, constituem “outra maneira de contar a nossa história, diferentemente de como a contam cronistas e historiadores”.

Em 1968, Fortuna planejou e coordenou a edição do livro Dez em Humor. Hoje objeto de culto, o livro reúne, além dele, Claudius, Henfil, Jaguar, Leon Eliachar, Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, Vagn, Zélio e Ziraldo. O cronista José Carlos (Carlinhos) Oliveira foi convidado para escrever o prefácio e as apresentações, que deveriam ser curtas e objetivas, perfis resumidos dos autores.

Carlinhos instalou sua Olivetti na mesa do Antônio’s, bar da moda, e escreveu o texto numa tarde, tendo ao lado a supervisão técnica de Chico Buarque que, enquanto bebia, dava algumas “peruadas”. O resultado é uma obra-prima do “desbunde”. Fortuna chiou e pediu para podar alguns trechos de sua apresentação. O que restou é, ainda assim, bastante anárquico:

“Reginaldo (seu nome de batismo) vai acabar presidente da Associação Brasileira de Humoristas, essa república de sorriso dúbio, mais enigmático que a Gioconda. Quanto ao Fortuna propriamente dito, isto é, o Carnê Fortuna, eu ia inventar uma piada (eu, quer dizer, Carlinhos Oliveira, autor dessas biografias simplificadas, pai de Sheila de Oliveira, filho de Sheila de Oliveira, irmão da mesma, e assim por diante), quanto a – quem? Bom, quanto a Fortuna, se tivesse nascido pobre, teria sido uma excelente Sheila de Oliveira.”

No Pasquim, que ajudou a fundar em 1969, Fortuna desenvolveu mais o lado de caricaturista: desenhou tanto a equipe inicial do semanário quanto personalidades como o presidente norte-americano Richard Nixon ou o craque Tostão. Ilustrou diversas capas, fez vinhetas, cartuns e textos.

Na época, o humorista e músico Reinaldo Figueiredo (futuro Casseta & Planeta) rascunhava as primeiras folhas como cartunista, seguindo o professor Reginaldo:

“Um dia, na Redação, fiquei observando Fortuna retocar o desenho. E aprendi que o cartum ou ilustração para a imprensa não é um desenho para ficar emoldurado. É uma matriz para reprodução impressa. O original dele às vezes tinha pedaços de papel colados por cima, ou tinta branca para cobrir partes que queria mudar ou apagar. Na impressão em preto e branco, em alto contraste, os remendos e correções não aparecem. O que importava era o resultado final, e este era feito com o maior capricho. Enfim, uma obra de arte.”

Prisão

Há que registrar a prisão da “patota” (como a turma que não fazia parte dela chamava a equipe do Pasquim), em dezembro de 1970. Dois dias depois de deixarem a Vila Militar do Rio, Paulo Francis, Sérgio Cabral (pai), Flávio Rangel e Luiz Carlos Maciel, entre outros, posaram para uma foto histórica de Paulo Garcez – está no livro – em frente à casa do jornal, na rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo. Fortuna em primeiríssimo plano, peito aberto na camisa social desabotoada.

Em 1971, o artista deu início à série Madame e Seu Bicho Muito Louco, um dos pontos mais altos de sua criação. Os quadrinhos, que se espalhavam nas páginas do Pasquim e das revistas Bicho e Careta, agora reúnem-se todos no livro. É um festival de situações imponderáveis e diálogos surpreendentes entre uma senhora autoritária e seu cão de bigodes.

Na mesma batida, Fortuna idealizou a revista O Bicho, que teve oito números, de março de 1975 a novembro de 1976, possibilitando que nomes como Laerte, Chico e Paulo Caruso, Luiz Gê, Luscar e Nani divulgassem seus trabalhos fora do esquema underground. “Para a minha formação profissional, Fortuna foi decisivo. Posso dizer que ele e o argentino Quino foram os mais importantes. Não apenas nos aspectos de conteúdo e técnica, mas na coragem de evoluir, de arriscar, de ter coerência até na hora de mudar radicalmente de direção. Ele poderia continuar fazendo eternamente aquelas bailarinas do tempo da revista Careta, que eram lindas, mas seguiu em frente sem medo, buscando novas possibilidades para o desenho e o humor”, diz Laerte.

Após ter sido editor de arte, ilustrador e capista na revista Veja entre 1974 e 1976, Fortuna aportou em 1979 no suplemento “Folhetim”, da Folha, então editado por Tarso de Castro, que lhe imprimiu um tom à la Pasquim. Ao longo dos anos 1980, produziu para o jornal charges a nanquim e a caneta hidrográfica, com temas predominantemente políticos (vivia-se o auge das Diretas-Já) e econômicos.

Notável também em sua passagem pela Folha foi a seção “Diz, Logotipo!”, que, como o nome indica, tratou da desconstrução dos signos não verbais e de marcas tradicionais, um sonho antigo do desenhista: fazer cartuns sem dar um traço.

“Há na obra de meu pai uma obsessão pela informação não verbal. Ele descobre nos signos um viés autoritário e agressivo contra o qual o artista precisa resistir. O resultado da radicalidade dessa percepção está na série ‘Diz, Logotipo!’. Eis aí o projeto anticapitalista de Fortuna, a sua repulsa à propaganda e às instituições”, analisa Felipe Fortuna. No dia 5 de setembro de 1994, a Gazeta Mercantil, com a qual o chargista começara a colaborar um ano antes, em seu retorno à grande imprensa, publicou um desenho em que se vê a imagem personificada do tempo, com barbas longas, carregando nas mãos uma ampulheta e uma gadanha, o que a associa à morte, e os dizeres: “Tempo não é mais dinheiro”. Terminava ali a carreira de Fortuna, com ironia amarga no último traço.

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Alvaro Costa e Silva é jornalista