O engenheiro Sérgio Alexandre Esteves Areal, de 32 anos, casado, pai de quatro filhos, foi assassinado com cinco tiros pelo pintor Iberê Camargo na Rua Sorocaba, próximo da esquina com Voluntários da Pátria, em Botafogo, no Rio de Janeiro.
Estamos em 5 de dezembro de 1980, o calor no Rio de Janeiro ultrapassa os 30º e já se veem no comércio as cores do clima pré-natalino. Motivo do crime: um diálogo curto e nervoso entre assassino e vítima, que jamais se viram antes. Sérgio chegara a seu apartamento uma hora antes, cansado de uma viagem a trabalho, em São Paulo, na empresa Engesa, onde prestava serviços como projetista.
Ao chegar encontra um clima tenso em casa: o filho mais novo de dois anos está febril e necessita de um determinado medicamente. Ele se dispõe a comprá-lo e ao descer até a portaria estabelece uma trivial desavença doméstica com a esposa Sandra em frente ao prédio onde moram. No outro passeio, Iberê Camargo está acompanhado da secretária Suely, à procura de uma loja onde irá comprar cartões de Natal para enviar aos amigos logo após encerrar os trabalhos no ateliê, próximo dali, na Rua das Palmeiras.
Ele se detém para observar marido e mulher que se desentendem. Impaciente, o homem dá por encerrada a discussão, e começa a se afastar. Seu destino é uma farmácia onde irá comprar o remédio para o pequerrucho doente. E só então percebe o olhar curioso do estranho em sua direção. Sérgio atravessa a rua, passos nervosos, e critica a curiosidade do estranho: “O que você está olhando?” Em seguida passa por ele e dá-lhe um esbarrão, desequilibrando o pintor. Iberê, então, saca de uma bolsa tipo capanga, um revólver Magnum 357, carga dupla, calibre 38, aponta na direção do estranho e aperta o gatilho cinco vezes. Dois tiros atingem o peito, um em cada braço, e um na perna.
Sérgio, que trajava apenas um short e sandálias havaianas, cai morto.
A visão de um mundo sombrio
Iberê é preso em flagrante, levado para a 12ª DP, na Rua Bambina, e alega legítima defesa. Encaminhado à prisão, no Ponto Zero, foi confortado por inúmeros amigos e admiradores de sua arte, entre eles o marechal Cordeiro de Farias, que acionou outro militar, o general Edmundo Murgel, secretário estadual de Segurança, para que o criminoso recebesse uma deferência toda especial no cárcere.
Não há registro n’ O Globo e Jornal do Brasil, que deram ampla cobertura ao crime, sobre a interferência também do general Golbery do Couto e Silva, um dos pilares mais sólidos da ditadura militar, ainda vigente, no sentido de proporcionar ao criminoso todas as regalias nos 28 dias que permaneceu preso. Mas na redação do JB, onde eu trabalhava, sabia-se que Golbery interferira no caso.
Menos de dois meses depois do crime, em 5 de janeiro de 1981, Iberê Camargo estava em liberdade, “absolvido liminarmente”, pelo juiz Sérgio Verani, do 4º Tribunal do Júri. Na avaliação do juiz, Iberê agiu em legítima defesa e usou em sua defesa o “único meio possível e eficaz para se defender.” Estava estabelecido o recorde de andamento judicial acelerado envolvendo um crime de morte no Brasil, em todos os tempos.
No dia seguinte, Iberê retornaria à sua rotina profissional e doméstica, como um cidadão que nada deve à Justiça, embora reconhecesse numa frase a sua indecisão quanto ao futuro: “Não sei o que vou fazer da vida.” Mas ele soube, sim: continuou a expressar magnificamente em seus valiosíssimos quadros imagens que refletiam sua visão do mundo sombrio que o cercava e atormentava.
Programado para matar
O advogado da família do engenheiro e o promotor recorreram da decisão, que acabou confirmada pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. O caso foi encerrando dois anos depois, quando desembargadores do 1º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça acataram, por 3 votos a 2, a decisão do juiz: Iberê fora definitivamente inocentado.
Corta para: dias atuais, maio de 2014, ano em que se celebra o centenário de Iberê Camargo, morto em 1994. Uma retrospectiva ocorre em São Paulo, e merece da revista Veja ampla cobertura assinada por um Marcelo Marthe, que entroniza Iberê nos píncaros da glória como “o maior pintor brasileiro do século XX – o Pelé da pintura”. A partir dessa afirmação, Marthe estabelece um ranking na pintura brasileiro. Quem será o Garrincha? Cândido Portinari? E Didi? Seria Di Cavalcanti? Guignard certamente é o Tostão. Tarsila do Amaral ou Djanira – qual delas seria a Martha?
Ao longo do texto pictórico, recheado de frases monocromáticas, finalmente o leitor chega ao breve trecho que lembra o drama policial, assim resumido: “Em dezembro de 1980, o pintor saiu de casa com sua secretária para comprar cartões de Natal. No caminho teria sido agredido por um engenheiro – e matou o sujeito com dois tiros.”
Como se vê, os lances da tragédia, passo a passo, extraído de reportagens da época, foram resumidos pelo repórter em uma lacônica descrição, quando dedica à vítima o frio e desrespeitoso tratamento de “sujeito”.
Houve leviandade e incompetência na apuração desse fato. O “sujeito” a que Marthe se refere era um profissional capaz, pai de quatro filhos, que jamais discutira e muito menos brigara com estranhos, e que esbarrou com um paranoico que vivia em permanente sobressalto, pronto a sacar sua Magnum contra quem se interpusesse à sua frente, ainda que acidentalmente, como ocorreu com o engenheiro.
Iberê era um sujeito programado para matar. Fez curso de tiro no stand do Fluminense e no do Corpo de Bombeiros, e andava frequentemente armado. Seu porte de arma foi conseguido, sem dúvida, através de suas amizades no alto escalão militar. Justificava que era para se defender da onda de violência que imperava no Rio em 1980.
Iberê, se vivo fosse, usaria um tanque de guerra para se locomover pelas ruas da cidade.
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Ivanir Yazbeck é jornalista e escritor