O problema é que de todas as coisas sucateadas com a automatização da indústria, a única que não se adaptou nem se resignou foi a mão de obra. Ela se tornou obsoleta, mas não seguiu o caminho dos outros componentes da produção antiga para a extinção. Continua sendo produzida como se ainda tivesse uso. Tem o mesmo formato e o mesmo sistema de funcionamento – pernas, braços, pulmões, coração, circulação sanguínea – que tinha há milhares de anos. Ainda precisa ser alimentada do mesmo jeito, ainda transforma o que ingere em energia e elimina o que não aproveita, poluindo o ambiente, como antigamente.
Não houve mudança significativa no desenho estrutural do ser humano desde o aparecimento do dedão opositor, e isto foi há séculos. Só o pseudocomputador que ele chama de cérebro teve algumas alterações, mas são quase imperceptíveis. Todos os outros instrumentos da produção industrial ultrapassada foram se modificando com o passar dos anos ou simplesmente dando lugar a mecanismos mais eficientes e rentáveis. O homem não se adaptou nem aceitou sua substituição. Continua se reproduzindo, enchendo o mercado de obsoletos iguais a ele.
Monstros hipotéticos
Estou digitando este texto num computador e pensando que o que meus dedos escrevem serve como metáfora para o que aconteceu com o mundo. Antes, o que eu batia no teclado de uma máquina de escrever – que já era, sozinha, uma metáfora para o século 19 – era rebatido por um operador de linotipo, um híbrido de máquina de escrever e usina metalúrgica de onde saíam as minhas linhas transformadas em chumbo. Depois de uma revisão, as linhas voltavam ao linotipista para serem emendadas, depois eram montadas numa matriz da qual faziam o flan, um papelão que enchiam de chumbo para fazer a chapa encurvada que montavam na rotativa que imprimia o jornal. A passagem da composição “quente”, nas fumegantes linotipos para a composição “a frio”, fotográfica, que virava chapa para rotativa em offset, sem a intermediação do chumbo, simbolizou o fim de um ciclo industrial e o prenúncio do mundo robotizado que viria. A produção com sangue quente dava lugar à produção volatizada. Hoje, o texto pode passar do meu computador para o computador que comanda a rotativa intocado por mãos humanas. A impressão digital sem impressões digitais.
As velhas linotipos, até pelo seu tamanho desajeitado, lembram dinossauros que sobreviveram a sua era, andando por aí, atrasando o progresso do planeta. Seres humanos sem lugar na pós-indústria são como esses monstros hipotéticos. Sua era passou e eles não se flagram. O que fazer com eles? Pode-se limitar seu acesso à alimentação, o que, dado o seu sistema primitivo de metabolismo, os condenaria à extinção em poucas gerações. Mas existiria o perigo de eles começarem a comer qualquer coisa, inclusive nossos computadores e inclusive nós.
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Luis Fernando Verissimo é jornalista e escritor