Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Periferia no centro

Jornalismo comunitário, jornalismo cidadão, jornalismo hiperlocal, jornalismo non-profit. Não aceito nenhum desses rótulos. Na minha avaliação, o que os correspondentes do blog Mural fazem há pouco mais de três anos é jornalismo de boa qualidade. Bom jornalismo. Ponto.

Tudo começou em 2010, quando Bruno Garcez, bolsista do ICFJ-Knight Fellowship Program, desenvolvia como projeto, em São Paulo, uma formação para 60 jornalistas-cidadãos, moradores da periferia. Dessa turma, 20 encararam uma aventura: a parceria com a Folha de S.Paulo, que hospedou um blog de notícias da periferia e de municípios da Grande São Paulo.

Na nova casa, o Mural foi ao ar em 24 de novembro de 2010. O desafio seria diário: realizar pautas nas horas que sobravam entre estudo, trabalho remunerado e uma média de três horas de deslocamento em péssimo e lotado transporte público. Cada correspondente é responsável pela cobertura do local onde reside. Da pauta ao texto, à foto, ao vídeo, tudo.

Desde 2010, outras três turmas foram formadas. Como o Mural é colaborativo, muitos jornalistasvão se dispersando ao longo do caminho. Sempre no mês de novembro usamos a reunião de comemoração de aniversário do projeto para dar boas-vindas aos novos participantes.

Hoje, o grupo tem 50 “muralistas” – com a permissão do jogo intencional de palavras –, moradores de mais de 40 bairros e cidades da Grande São Paulo.

Maratona de sofrimento

Um dos eixos que norteiam o trabalho é que não acreditamos em um jornalismo de gueto. Não há a bandeira de escrever “como periferia”. Não há o discurso “de nós para nós”. Nós somos todos nós. A periferia só é periferia porque foi abandonada pelo Estado. Senão, Campo Limpo seria uma Vila Mariana. Jardim Damasceno, Santana. Perus, Vila Madalena.

Ou seja, o Mural é um blog que cobre uma determinada região geográfica, como é o de um correspondente de Nova York. Ou Londres. Ou Ferraz de Vasconcellos. Ou Paraisópolis. Que diferença faz?

Há, sim, um engajamento inevitável, porque é preciso desconstruir o preconceito vigente na cobertura dessas áreas. Por isso, duas linhas de pautas estão fora da mira desses jornalistas.

A primeira é a violência, pois a imprensa “normal” já cobre o tema e o blog não pode dar proteção a seus colaboradores.

E não cobrimos projetos de ONGs, fundações e demais ações de responsabilidade social que chegam e saem das comunidades quando bem entendem.

Ou seja, a cobertura do Mural procura negar o estereótipo solidificado ao longo de anos: ou a periferia é algoz da cidade, perpetradora dos atos violentos e, em si, o lugar da violência, ou seus habitantes são “coitadinhos” (“carentes”), vitimizados a ponto denão terem iniciativas próprias de desenvolvimento e mudança, reduzidos a objetos de estudos e boas ações de outros.

Era essa a dicotomia do noticiário sobre a periferia antes de o Mural chegar. Os muralistas estão preocupados em cobrir a realidade de suas regiões. Aonde outros jornalistas e veículos não chegam. Não sabem chegar. Não querem chegar.

No início, alguns não queriam escrever sobre o que não era bom ou não funcionava. Diziam não se sentir bem falando mal de onde moravam, que queriam mostrar o lado positivo.

A discussão do grupo evoluiu. Se um muralista hoje descreve a maratona de sofrimento que é ir a uma consulta no posto de saúde (que muitas vezes nem fica em seu bairro, e é preciso antes enfrentar o desafio do transporte público até lá), isso não é falar mal.

É denunciar a falta de planejamento, infraestrutura e investimento na oferta dos serviços públicos da cidade (pelos quais todos nós pagamos impostos, eles também).

Relação direta

O blog Mural ganhouo prêmio TopBlog na categoria Cotidiano por dois anos seguidos, em 2011 e 2012. E muito mais vem por aí.

Em janeiro, o coletivo ganhou um espaço quinzenal no Guia da Folha. Em fevereiro, um convite para escreverem para o Observatório da Imprensa. E um subgrupo de meninas está para lançar mais um site, o Nós, Mulheres da Periferia.

Em tempos de revoluções no negócio e no formato do jornalismo, voltar àbusca pela relevância perdida e pela relação direta com o leitor parece pavimentar o caminho do Mural para mais conquistas. Como diz o título de um dos poemas escrito pela muralista Jéssica Moreira, 22, correspondente de Perus, “Eu (não) quero C, eu quero star”.

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Izabela Moi é jornalista e completa com orgulho duas décadas de exercício profissional em 2014