“Ontem, acordei às 4 da manhã com uma música na cabeça. Era ‘Alento’, de Paulo Cesar Pinheiro, cantada pelo Paulinho da Viola”, diz Zuza Homem de Mello, um dos musicólogos – para dizer o mínimo – mais influentes do Brasil. Zuza queria encontrar o tema perfeito para uma festa na Casa do Saber, onde dá concorridas aulas há muitos anos. “Tinha que ser o Paulinho da Viola.” Paulinho da Viola é um dos seus ídolos.
Curador do BMW Festival, que começa na quinta-feira (29/05), em São Paulo, e segue para o Rio e Belo Horizonte, Zuza transita entre a melhor música brasileira e o grande jazz desde a década de 1950, quando começou a escrever seus artigos para a imprensa. Música com Z-Artigos, Reportagens e Entrevistas (1957-2014), saindo pela editora 34, reúne uma impressionante coleção desses textos de Zuza, alguns deles publicados no Valor. Aos 80 anos, continua, como ele mesmo diz, “trabalhando feito doido”.
O livro impressiona não só pelo trânsito livre no mundo da melhor música popular, mas também pela perspicácia e generosidade do crítico, capaz de trazer o leitor para dentro de suas paixões. Muitas vezes, Zuza parece um fã – e o fã entusiasmado é difícil de contornar.
Para ficar no reino dos furos jornalísticos, Música com Z traz uma entrevista inédita com o contrabaixista Charles Mingus (1922-1979), “O Homem Zangado do Jazz”, como era conhecido no meio. “Mingus, não sei por que, me recebeu com uma grande gentileza”, diz Zuza, que até hoje só havia publicado duas pequenas respostas do músico. “Alô, Zuza, e alô para os seus leitores brasileiros”, diz um simpático Mingus logo no começo da conversa. “E olha que ele tinha fama de ser um cara insuportável.”
Zuza entrevistou os grandes do jazz americano ou os viu em ação nos momentos mais incadescentes de suas carreiras. Um nome, porém, que aparece como referência em diversas conversas do livro, Zuza nunca tentou entrevistar: Duke Ellington, o mestre de todo mundo, incluído na lista dos artistas que Zuza nunca deixou de ouvir pela vida afora. Os outros são João Gilberto, Tom Jobim, Jacob do Bandolim, Bill Evans, Thelonius Monk, o Nuevo Quinteto Real de Horacio Salgán, Stravinsky, Ravel, Debussy e o Mozart dos Concertos para Piano.
João Gilberto é a não entrevista que Zuza gostaria de ter feito. Ou melhor, fez, mas não publicou. “Em 1967, nós conversamos bastante, mas ele não me deixou gravar. Seria muito difícil reproduzir tudo aquilo de memória.”
Dançarino incorrigível
Para Zuza, a música é um campo vasto, e o seu Música com Z mostra que o escritor divide o gosto com uma infinidade de bons artistas. Tanto pode gostar de música caipira como elogiar generosamente um Morris Albert, autor de “Feelings”, que entrevistou em seu programa na rádio Jovem Pan, em 1981, e de quem ainda guarda uma forte impressão. Ao recuperar textos e transcrever gravações tão antigas, Zuza teve o bom senso de atualizá-los com os comentários de 2014. No caso de Morris, ele o defende de uma acusação de plágio, sofrida naquele mesmo ano. “Na minha opinião, uma decisão injusta.” Para Zuza, “‘Feelings’ é uma linda canção, de letra conquistadora’. E basta.
O livro é dividido em sete sessões, que podem contar histórias de canções, como “As Time Goes By”, ou revelar o gosto pessoal do autor, que não se entusiasma muito com uma unanimidade como Marisa Monte e despreza o sucesso de um Zezé Di Camargo (“Ele ganha mais do que Tom Jobim”). O tom geral, porém, nunca é azedo. Ao contrário, Música com Z tem a virtude de despertar uma vontade incontrolável de ouvir os artistas que Zuza tanto admira.
O escritor viu quase todos de perto, no momento exato, em shows memoráveis. “O mais arrebatador”, lembra no livro, “foi o concerto de jazz no Carnegie Hall, em 29 de novembro de 1957, com a orquestra de Dizzy Gillespie, seguida por um jovem pouco conhecido, Ray Charles, pelo quarteto de Thelonious Monk, com John Coltrane, pelo quarteto de Zoot Sims, com Chet Baker, pelo trio de Sonny Rollins e com Billie Holiday ao final.” Nada mau. “Ainda guardo na memória alguns daqueles sons, era estudante de música e o ingresso custou US$ 3.”
Zuza consegue mostrar duas versões do mesmo arrebatamento. No caso de Chet Baker, que foi entrevistado em 1985, ele desmonta a primeira impressão que teve de um sujeito quase angelical, etéreo e pacífico, reforçada pelo concerto assistido em 1957, no auge do sucesso do trompetista-cantor. Ao comentar a biografia escrita por James Gavin em 2002, No Fundo de um Sonho: A Longa Noite de Chet Baker, em que Baker aparece como um viciado que maltratava as mulheres e vivia cercado de escroques, Zuza é incisivo. “Sua vida foi uma sucessão de trapaças e cenas da mais chocante crueldade. A delicadeza de sua música nada tem a ver com a violência em que vivia imerso no mundo das drogas. Para uma de suas mulheres, Chet era a encarnação do demônio.”
Já o caso de Miles Davis é engraçado. Na passagem do trompetista pelo Brasil, os dois se encontraram no elevador. Zuza ouviu então algo próximo de um elogio. “De onde é que eu conheço você?”, perguntou um dos maiores gênios do jazz.
Os textos de Música com Z jogam belas luzes sobre os artistas da música brasileira. Tanto podem enaltecer as qualidades de um disco como “Emoções”, gravado por Roberto Carlos em 1983, quanto louvar a voz e a amizade do cantor Emílio Santiago, morto em 2013. Gilberto Gil e Paulinho da Viola são tratados como gênios. “Gil é demais.” Luís Melodia aparece como o autor de uma das músicas indispensáveis numa lista de preferidas para ouvir e dançar, com a canção “Cara a cara”.
Zuza, aliás, é um dançarino incorrigível, mesmo depois de recuperado de uma doença grave. “Na minha festa dos 80 anos, eu e a Marisa Orth mandamos ver”, conta. “Eu não paro de dançar. Dança é fundamental para quem gosta de música.” Pelo jeito, a curiosidade também. Nos dias anteriores à entrevista, Zuza vinha tentando diminuir a montanha de discos que mora em seu apartamento. Cobriu de elogios o último trabalho de Jean Garfunkel, a clarineta de Anat Cohen no disco “Choro Ensemble” e o piano de Leandro Braga, em gravações que homenageiam Milton Nascimento. Ex-contrabaixista, Zuza agora é só ouvinte – além de escritor, professor e curador. E adora piano e sax tenor.
Atrações do BMW, por Zuza
O pianista Ahmad Jamal: É uma figura fundamental do jazz, que conseguiu chegar aos 80 tocando muito bem.
O cantor Bobby McFerrin: É único na história da música. Trabalha sozinho e sem instrumento.
O contrabaixista Dave Holland: Um camaleão. Sabe pular de uma big band para um trabalho solo, além de acompanhar outros artistas com grande brilho.
O saxofonista e flautista Kenny Garrett: Tocou com Miles. Precisa mais?
O jovem trompetista Chris Botti: Tem uma sonoridade muito limpa, e opta por melodias bem escolhidas. Bom de palco. Melodioso. Star.
Snarky Puppy: Uma banda de músicos jovens do Texas. Coisa Nova. Um achado.
Spok Frevo Orquestra: A grande atração brasileira. São maravilhosos, empolgantes, e tocam um frevo que atordoa.
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Cadão Volpato, para o Valor Econômico