Os dez dias de treinamento da seleção alemã na pacata região austríaca sul tirolesa eram para ser um período de sossego para os jogadores que, cansados dos campeonatos e decisões pelos seus times, pudessem iniciar o processo de entrosamento da equipe que se prepara para a Copa do Mundo no Brasil. Entretanto, o que veio foi chumbo grosso juntamente com o apelido dado pela mídia de “Preparação Caos”.
A cronologia
Com atraso surpreendente, o tabloide sensacionalista Bild descobriu que o jogador Kevin Großkreutz, convocado para a seleção, mas jogador do Borussia Dortmund, depois da derrota frente ao Bayern de Munique pela Taça da Federação de Futebol Alemã, frustrado e visivelmente alcoolizado, urinou em frente a todos, no saguão do hotel Berlin Berlin, onde também estavam hospedados os dirigentes do clube. Tomando conhecimento disso através da imprensa, o técnico Joachim Löw chamou-o para conversar com urgência, passou um sermão no jogador e ratificou a “função exemplar” (Vorbildfunktion, em alemão) que jogadores devem ter perante a opinião pública. Vale lembrar que Löw até bem pouco tempo se mostrava implacável com “escorregadas no comportamento”.
A mais severa das punições
Em 11 de outubro de 2008, num jogo da seleção alemã contra a da Rússia, o atacante Kevin Kurany, sentado na tribuna e não menos frustrado pela não convocação para o jogo, saiu à francesa ainda antes do final do segundo tempo. Löw, na época, declarou à imprensa: “Enquanto eu for técnico desta seleção, Kurany nunca mais jogará aqui”. Declarações de arrependimento, incluindo lamentação via mídia por parte do jogador de temperamento explosivo, não trouxeram o efeito desejado daquele que, por vezes, havia entrado em campo com a responsabilidade de capitão da seleção alemã. Hoje, o jogador nascido no Rio de Janeiro, em 1982, vive com robusto salário, mas no ostracismo futebolístico na equipe do Dínamo em Moscou. Sua pior punição foi e será não poder nem jogar na Copa do Mundo e, na melhor das hipóteses, jogar uma final de Copa em sua cidade natal.
Löw acima da velocidade
Logo depois do vazar do “deslize” de Großkreutz, vazou também através do “instinto jornalístico” do Bild que Löw, desde março, tendo somado 18 pontos na sua carteira de motorista por desrespeito ao limite de velocidade e por falar ao celular enquanto dirigia o carro cedido pela Confederação Alemã de Futebol, perdeu a carteira de habilitação pelo período de seis meses. Questionado por um jornalista durante uma coletiva de imprensa, o gerente da seleção Oliver Bierhoff, visivelmente despreparado e sem aconselhamento prévio com o chefe de imprensa, disse em tom jocoso: “Vou falar para os nossos patrocinadores (Mercedes Benz) para só emprestarem para o Löw carros que só alcancem a velocidade de 80 quilômetros por hora”. O próprio Löw se mostrou arrependido e jurou “fazer uso do trem”.
Vale lembrar que essa não é a primeira contravenção do treinador no volante: em 2006, com seu ex-chefe Jürgen Klingsmann no banco do acompanhante, Löw foi multado por alta velocidade e ficou quatro semanas sem permissão para dirigir (ver aqui).
Como se tudo isso não bastasse, um dia agendado para a gravação de um comercial para a Mercedes Benz acabaria em grave acidente, que causou dois feridos, um deles grave. Depois do acidente, a equipe declarou à imprensa estar em estado de choque. Mais uma vez despreparado, frente à imprensa na primeira coletiva depois do acidente, Bierhoff não fez declarações que, de fato, espelhassem a gravidade do ocorrido. Somente na segunda coletiva ele mencionou analisar a “real necessidade desses compromissos com patrocinadores”. A ficha caiu bem tarde. O piloto de Fórmula 1 Nico Rosberg também fazia parte das gravações, mas conseguiu frear a tempo. Já o motorista do outro carro atropelou dois turistas alemães que passeavam pela montanha.
Pressão midiática
Fora todo o drama durante a estada na Áustria, ainda está incerto o estado físico do capitão Phillip Lahm (o jogar preferido de Pelé durante a Copa de 2006), que durante a final do jogo da Copa da Confederação alemã, em Berlim, machucou o tornozelo. As notícias concernentes à Phillip se dão bem perto do surreal. “Phillip está bem”. “Phillip não está cotado para o jogo amistoso com a seleção de Camarões” (31/05).
Em letras garrafais, o Bild afirma que depois do final da estada na Áustria, Sami Khedira, Phillip Lahm e o goleiro Manuel Neuer irão “aproveitar os 3 dias livres” para “treinar em Munique” (sede do Bayern) antes de embarcar para o Brasil na quinta-feira (5/6, ver aqui).
Tragédia anunciada
Pela onipresença e pelo conteúdo da “pauta Brasil” na mídia alemã, tradicionalmente caracterizada pelo discurso do copo meio vazio, ir ao Brasil é um perigo – ratificando o que declarou o secretário-geral da Fifa, Jérôme Val>ver aqui).
Em entrevista à rede aberta 3 SAT, exibida na quarta-feira (28/5) no programa de horário nobre Kulturzeit (Hora de cultura), simultaneamente exibido na Áustria, Suíça e Alemanha, o escritor Luiz Ruffato, atualmente em turnê de promoção do seu novo livro Mundo inimigo pela Alemanha e Áustria, é perguntado somente sobre a situação política do país, o que mostra a ressonância midiática do seu discurso crítico iniciado, internacionalmente, na Feira do Livro.
Na sexta-feira (30/5), Ruffato fez uma leitura de trechos do seu último livro nas dependências da embaixada brasileira em Berlim, da qual os funcionários não conseguiram esconder a tensão e o desconforto causado a eles – pela agenda propriamente dita e também pela entrevista concedida semanas antes ao semanário Der Spiegel”, que na capa trazia uma bola de futebol com a manchete “Morte e jogos”.
A entrevista realizada em conjunto com o cinegrafista Thomas Keller, em Berlim, pode ser vista aqui e aqui.
Campo Bahia
As pautas sobre Brasil são diárias na mídia alemã. O “Campo Bahia”, lugar em que ficará hospedada a seleção alemã, também foi tema. Dessa vez no programa de sátira política de maior audiência do país, o Heute Show. Oliver Welke, o âncora, é um dos melhores comentadores de futebol do país. Ele e o ex-goleiro Oliver Kahn serão a dobradinha da equipe da ZDF no Brasil. Na edição de sexta-feira (30/5), a chamada da matéria foi feita com uma sambista com os dizeres: “Vocês são todos de uma associação de carnaval?” – o que é sinônimo de “República das Bananas”.
Depois ironizar o excesso de velocidade do técnico nas ruas, Welke questionou o porquê da construção de um alojamento especialmente para a seleção. “Por que não reservaram um hotel?” A matéria trazia também imagens da população à beira da miséria, que vive nas redondezas do “alojamento de luxo”. Irônico, ele afirmou: “Nessa ilha, os jogadores estarão bem longe dos manifestantes. Esses, por sua vez, se quiserem alcançá-los, terão que pegar um barco”. Em tom de indignação, também denunciou que uma reserva natural foi destruída para dar lugar ao campo de treinamento (ver aqui).
Pessimismo por antecipação
Enquanto no Brasil a seleção alemã consta como uma das favoritas, como a seleção que joga um futebol atrativo e instigante, em casa os comentários na mídia vão de um discurso pessimista a um apocalíptico: “Nós faremos só vergonha na Copa do Brasil”; “O técnico vai nos fazer passar vergonha e voltar pra casa de mãos vazias. Obrigada, Löw!”, dizem comentários de leitores do jornal Bild, tradicionalmente fervorosos patriotas, mas que parecem ter se rendido ao pessimismo que rege no país.
Equipe de torneio
Expressão sempre mencionada, nas conversas sobre futebol, por aqui. É sempre o mesmo texto: “A Alemanha é uma equipe que cresce durante o torneio”, e isso já foi confirmado algumas vezes. A última delas foi por ocasião da partida da seleção alemã para a Coreia. Os irmãos Klaus & Klaus fizeram um “cover” da música “Guantanamera”, que “ganhou” o seguinte refrão: “Um Rudi Völler/ Só tem um Rüdi Völler!”
Saindo totalmente desacreditada do país em 2002, a seleção alemã, mais uma vez, ratificou a tese de que cresce e desabrocha durante o torneio. Moral da história: mesmo derrotada pelo Brasil, a Alemanha voltou para casa sendo recebida como vitoriosa. A canção se tornaria a desgraça eterna de Rudi Völler, a quem a música acompanha até hoje, por onde ele aparece.
Já o atual técnico sabe muito bem que se voltar do Brasil sem a taça na mão, isso será o fim de sua carreira na Comissão Técnica. Em 2002 vice, em 2006 sobrou o terceiro lugar e o título de “Campeão dos Corações” para a seleção. Para os altos funcionários da Federação Alemão de Futebol (DFB), a única opção é a vitória. O problema é que a postura da Comissão Técnica, até agora, deixa dúvidas se ela própria leva fé suficiente nessa empreitada futebolística.
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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com