Nos próximos dias será praticamente impossível para qualquer cidadão brasileiro ficar indiferente ao futebol. Mesmo aqueles que odeiam o secular esporte bretão serão afetados, direta ou indiretamente, pelos desdobramentos da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil. Grande parte das instituições de ensino estará de férias; nas cidades-sedes do torneio promovido pela Fifa será decretado feriado em dias de jogos e, quando a seleção brasileira entrar em campo, o país literalmente vai parar.
O futebol, esporte mais popular do planeta, é capaz de despertar os mais diferentes sentimentos. É amado por uns, execrado por outros. Sartre já dizia que o futebol, talvez o único esporte em que nem sempre o mais forte sagra-se vencedor, é uma “metáfora da vida”. Para o antropólogo Roberto DaMatta, no cenário futebolístico, ao contrário de outras instâncias da sociedade, não há apadrinhamento, o sujeito entra em campo porque realmente sabe jogar, não por causa de seu capital social.
Em contrapartida, o futebol, ao ser utilizado como poderoso mecanismo de dominação das massas, também pode ter um caráter contrarrevolucionário, transformando-se assim em uma espécie de versão moderna do panis et circenses romano. Ao se preocupar demasiadamente com temas futebolísticos, muitos indivíduos deixam de pensar sobre as questões que realmente são relevantes.
Estados de espírito
Talvez nenhum outro povo tenha tanta identificação com o futebol quanto o brasileiro. “Somos os únicos pentacampeões mundiais”, diria o mais entusiasta dos torcedores. A cada quatro anos, somos tomados pelo anódino “ufanismo de Copa do Mundo”. Para o senso comum, com toda a preguiça mental que lhe é peculiar, um indivíduo pode trocar de mulher, de religião ou de preferência política, mas nunca mudar o seu clube de coração. Nelson Rodrigues afirmava que a seleção brasileira é a “pátria de chuteiras”. Uma conhecida música popular diz que todo menino brasileiro sonha em ser jogador de futebol. Já de acordo com a Rede Globo, durante os jogos do excrete canarinho, “todos seremos um só”.
Para entender o porquê de o futebol ser tão exaltado em nosso país devemos recorrer a algumas categorias de análise inerentes às ciências humanas. Segundo os estudos antropológicos, o Estado Nacional moderno, para a sua própria afirmação e coesão social, recorreu ao auspicioso recurso de forjar determinados “mitos fundacionais”. Desse modo, o “destino manifesto” foi a inspiração para a formação do povo estadunidense, uma suposta pureza racial foi crucial para a consolidação do tardio Estado alemão e as guerras de independência contra o colonizador espanhol foram importantes fatores identitários para nossos vizinhos sul-americanos.
Por outro lado, o Brasil (país onde o processo de independência foi mais um acordo do que propriamente uma guerra contra o colonizador lusitano) careceu de um fator que criasse uma identidade nacional. Sendo assim, na ausência de um “mito fundacional”, o futebol – esporte que inicialmente esteve associado à elite, mas com o tempo penetrou em todas as camadas sociais – tornou-se o principal elemento da unidade nacional. Em outros termos, o futebol preencheu a lacuna que faltava para consolidar a identidade brasileira.
Para boa parte de nossos conterrâneos, o futebol é o que há de mais importante na vida. Consequentemente, as camisas dos principais clubes tupiniquins, também conhecidas como “mantos sagrados” ou “segunda pele”, são verdadeiros fetiches contemporâneos. Em nosso país, milhares de pessoas matam e morrem por causa do esporte mais popular do planeta. Muitos brasileiros, ao se referir ao seu time, utilizam a primeira pessoa do plural, demonstrando um sentimento de pertencimento, como se cada torcedor entrasse em campo com os jogadores. Já outros indivíduos condicionam seu estado de espírito de acordo com as derrotas e vitórias de seu clube predileto.
Prazer e domesticação
Ao longo dos anos, os diferentes governos (principalmente os de caráter autoritário) e a grande mídia sempre souberam tirar inúmeras vantagens políticas e econômicas da obsessão dos brasileiros por futebol. A conquista do tricampeonato mundial no México em 1970, por exemplo, foi utilizada como propaganda ideológica a favor do governo Médici e, por outro lado, serviu para escamotear as atrocidades cometidas pelo regime ditatorial que então vigorava em nosso país. Não por acaso, jogadores engajados como Reinaldo, Sócrates, Alex e Paulo André geralmente foram perseguidos em seus clubes ou na seleção brasileira. O estereótipo do atleta alienado e passivo ainda é o modelo ideal para os cartolas brasileiros e para nossas elites políticas.
Por outro lado, o futebol não teria a mesma força mobilizadora se não fosse a atuação dos grandes meios de comunicação, sobretudo a televisão. Evidentemente que este esporte já era relativamente popular, independente da imprensa. Entretanto, as transmissões futebolísticas (primeiro via ondas radiofônicas e posteriormente pela TV) foram peremptórias para transformar os jogadores em grandes ídolos nacionais.
Atualmente, o futebol está totalmente inserido na chamada “sociedade do espetáculo”. Não basta apenas que o atleta tenha boas atuações em campo (talvez isso seja até secundário). É preciso que ele saiba se postar diante das câmeras, venda produtos, atualize diariamente seu perfil nas redes sociais e use o corte de cabelo da moda. Não obstante, a principal emissora do país tem o poder de impor os horários dos jogos de quarta-feira (às 22 horas, após a novela) e definir os clubes que os telespectadores irão assistir (ao privilegiar as partidas de equipes do eixo Rio-São Paulo).
Alienações à parte, o futebol, quando condicionado ao âmbito estritamente lúdico e sem fanatismos, tem vários aspectos positivos. Talvez seja o mais democrático dos esportes: quase todas as pessoas podem praticar, independente do tipo físico ou classe social. Qualquer indivíduo pode entender suas regras. Além do mais, assistir a uma partida bem jogada é uma experiência bastante interessante.
Em suma, o esporte mais popular do planeta pode desempenhar uma dupla função: ser uma atividade física prazerosa e uma boa fonte de entretimento ou, por outro lado, ser um poderoso instrumento de domesticação dos povos. Portanto, seria demasiadamente prestimoso se as rivalidades e outras questões inerentes ao futebol se limitassem apenas às quatro linhas.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG