Quando a mulher se disse incluída no processo moderno de “empoderamento” de toda a sua geração feminina, a primeira sensação foi de que a crise de labirintite iria me atacar de novo. Tonteei. Achei que a convulsão logo me seria inerente e a chegada da indesejada das gentes, definitiva.
As fichas armazenadas no cerebelo desabavam vertiginosamente à procura do sentido daquele “empoderamento” e – por que me deixaste, Aurélio? – não vinha de lá qualquer sentido. Zonzo, senti como se fosse emular uma Teresinha de Jesus. Estava prestes a fazer como a moça da ciranda e, que vexame!, quanta sensibilidade auditiva!, ir ao chão.
Eu precisava me apoiar rápido numa parede qualquer, de preferência a construída com os tijolos sólidos do bom vernáculo, e entender do que se tratava. O preconceito fez com que de início, dita por uma mulher, eu julgasse a palavra ligada à cosmetologia. Pó de arroz, por aí. Mas tratava-se de dama moderna demais para tamanho passadismo frufru.
Fui salvo pela tecla SAP recentemente instalado no pulso esquerdo. O aplicativo enviou o inglês do “empowerment” para a tela dos meus óculos Google – e fez-se a luz. Desta vez não era Jesus, mas a tradução simultânea.
A mulher era mais uma vítima dos paralelepípedos atirados, de preferência assim, cheios de silabação interminável, nas reuniões de Administração. Seu “empoderamento” afetado significava, no mundo dos escritórios e da reengenharia funcional, algo como “assumir autoridade, delegar poder”. Na nossa conversa de rua, ela o empregava como se fosse uma Anitta culta, uma mulher no comando do Show das Poderosas. No bom português de boca, ela teria dito “fodona”, mas ficou com vergonha de ser gente como a gente – e atacou com o neologismo bárbaro.
Não a desmenti. Acionei a tecla F. Fingi ficar frio. Sem fúria, fiz frente ao fricote. Fui.
Quatro linhas
Essas expressões prenhes de suposta sofisticação aparecem de vez em quando. Lá se vão muitas Copas desde que surgiu a abominável “a nível de”. Não queria dizer nada, era só pelanca no texto, mas aparentava carregar uma trivela semântica cheia de efeito intelectual, como se adquirida pelo locutor numa Academia de Letras. Como tem sempre alguém atrás de um brinco para adornar a língua, a-nível-de-aporrinhação ficou anos em cartaz.
Somos excessivos. Fomos educados no deleite dos rococós dos santos barrocos baianos, vibramos no carnaval com as fantasias do Evandro Castro Lima. No futebol, estamos cada vez mais cheios de toquinhos na bola até chegar ao gol. Objetividade por aqui é coisa feia, revela frieza de caráter. Secura emocional.
Achamos que quanto mais firula, melhor, e na hora de nos comunicar enchemos a língua de expressões inúteis, todas com lacinhos, bordados e volutas. A minha preferida, quando quero impressionar uma dessas moças estranhas que ao homem sarado prefere o letrado, é encher a boca com o ribombar de um “outrossim”. Seu Rolando Lero fazia o mesmo na Escolinha e atacava com um “Digníssimo mestre”. That’s Brasil. Zero em conteúdo, dez em prosopopeia.
É praga nossa, como o desvio de verba e os estádios da Fifa. Ninguém quer palavras curtas e simples. Coisa de pobre. Admiramos o falar difícil. Achamos que informa sobre ascensão social. De tempos em tempos, renovamos esse tique nervoso na ânsia louca de, ignorantes, cada vez menos lidos, parecermos sérios. A polaina na garganta é o novo preto. Já estivemos nos salões usando o babaquismo do “enquanto homem sensível”.
Semana passada, eu tropecei num senhor vetusto que queria ser moderno sem precisar montar num skate. Ele preferia a praticidade de um clichê pedante da moda. E me disse estar querendo sair, aos 65 anos, da “zona de conforto”. Dei força. Vai fundo.
O usuário do clichê quer demonstrar sensibilidade à flor da fala. Ele é capaz de enfrentar o calor senegalesco, de rachar catedrais, pelo prazer atual de transformar tudo em “disponibilizar”, “fidelizar” e “customizar”. De vez em quando, a frase feita também se cansa do assaz tantas vezes dito e muda, sempre de acordo com a tábua rasa das marés linguísticas. Transforma-se, confirmando-se uma eterna caixinha de surpresas. Já foi “a voz rouca das ruas”, lembra? Como o biquíni, o clichê se repagina. Adentra as quatro linhas para dizer que nenhum verão é igual àquele que passou.
Sorriso fingido
Enfim, vem a noite alta. Um cachorro uiva para a lua.
Quando se ouvem os passos dessa horrenda literatura, não tenha dúvida. É ele, o clichê, o senhor dos anéis e dos vícios linguísticos, quem assombra.
Uma senhora, que acabou de ver os quadros da bela exposição de Richard Serra, evitou me dizer que lhe lembravam gravuras de Amílcar de Castro. Ela preferiu simular empoderamente artístico. Disse-me que as obras do americano “remetiam” ao trabalho do brasileiro.
Fui de novo à tecla F. Fiz-me frio. Fingi sorriso sincero pelo “remetiam”, como se dissesse, agradecido: obrigado, senhora, por me agregar valor.
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Joaquim Ferreira dos Santos é colunista do Globo