Quando a seleção brasileira entrar em campo contra a Croácia no dia 12, na primeira partida da Copa do Mundo, não será apenas o time do técnico Luiz Felipe Scolari que estará em teste. Nem as obras de infraestrutura feitas para receber os torcedores. Para um batalhão de repórteres, editores, fotógrafos e cinegrafistas terá chegado a hora de colocar à prova o planejamento da maior e mais cara cobertura de um evento esportivo já feita pela imprensa no Brasil. Só para cobrir os 64 jogos em campo, quase 19 mil jornalistas foram credenciados pela Fifa.
Na Rede Globo, que vai transmitir todas as partidas, 1.496 profissionais foram credenciados, sob uma operação que inclui mais de 26 mil diárias de hotel, 4.050 passagens de avião e 60 equipes de cobertura. Somadas as cinco emissoras próprias e as 117 afiliadas da Globo, mais de 2,5 mil profissionais estarão envolvidos na Copa. Na Band, que também detém os direitos de transmissão dos jogos, foram emitidas mais de 3 mil passagens de avião e reservados 1,5 mil apartamentos. Cem veículos foram contratados pela emissora, o equivalente a 950 diárias de aluguel. “Cobrir a Copa no exterior já é difícil e o fato de o torneio ser no Brasil deixa tudo ainda mais complicado”, diz Paulo Motta, editor-executivo do jornal O Globo.
Nos torneios anteriores, o foco estava na competição em si. O que mais interessava ao público brasileiro eram as partidas, as táticas, os gols mais bonitos, o desempenho dos craques. Histórias sobre o país-sede entravam na fórmula como pano de fundo para o que ocorria nos campos. No Brasil, a história é outra. As manifestações recentes contra a realização do Mundial e a possibilidade de que os protestos se repitam vão desviar parcialmente a atenção da bola. Há quem acredite que a Copa pode se desenrolar mais fora do estádio do que dentro dele. Além disso, existem as eleições. A votação será em outubro, mas por lei as convenções partidárias para indicar os candidatos têm de ser feitas até o fim de junho, o que antecipa o tema do ponto de vista jornalístico e coloca um duplo desafio de cobertura às redações.
“Para a Folha de S.Paulo, a Copa é um dos dois assuntos prioritários do ano, junto das eleições”, diz Sérgio Dávila, editor-executivo do jornal. “O planejamento data de 2007, quando o país foi escolhido sede do evento, e vem sendo aprimorado e readaptado desde então”, afirma.
Embora o prazo de antecedência varie, a maioria das grandes companhias de comunicação do país começou a trabalhar cedo no projeto da Copa para tentar minimizar os problemas de logística e o custo da cobertura. No grupo Estado, o orçamento da redação, aprovado em novembro, já previa os gastos adicionais da Copa. “Mesmo assim, não deixamos de ir para a Ucrânia ou Venezuela. Há outras notícias à espera e a governança da empresa entende isso”, diz Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do grupo.
Investimento em pessoal e em tecnologia
O tamanho do país e o fato de os jogos estarem distribuídos em 12 cidades-sede, quatro a mais que o exigido pela Fifa, são um desafio à parte. No jornal O Globo, 30 pessoas vão passar os 32 dias do torneio viajando de um lado a outro do país – com mais 11 profissionais voltados a projetos especiais, entre outros membros da equipe da cobertura.
A falta de infraestrutura do país em áreas básicas, como transporte aéreo e hospedagem, só complica o que já é geograficamente difícil. Há dois anos, o portal Terra mandou 85 pessoas para cobrir a Olimpíada de Londres. Agora, destacou 100 profissionais para a Copa. “Em alguns casos, foi mais fácil reservar hotel em Londres que no Brasil”, diz Hélio Gomes, diretor de conteúdo do Terra. O UOL também terá 100 pessoas envolvidas direta ou indiretamente na cobertura do Mundial, incluindo 18 repórteres credenciados, diz Rodrigo Flores, diretor de conteúdo do portal.
Todo esse aparato tem um preço. “Na comparação com as últimas Copas, apesar de jogarmos em casa, a do Brasil é a mais cara em gastos. A mesma elevação de preços em hotéis, passagens e logística que o torcedor encontra é enfrentada por nossa equipe de repórteres”, afirma Dávila, da Folha.
Na ESPN Brasil, que também vai transmitir os jogos, um exemplo da explosão dos custos que está ocorrendo no país é que passagens compradas há um ano estão sendo vendidas, hoje, por um valor quatro vezes maior, diz Renata Netto, gerente de produção do canal.
Apesar das despesas crescentes, os grupos de mídia têm investido fortemente para atrair o público na Copa. No Rio, o canal SporTV construiu um estúdio de vidro na Ilha Fiscal, famosa por abrigar o último baile do império. Em forma de bola, o estúdio é giratório. “Demora 32 minutos para dar uma volta completa”, diz Raul Costa Júnior, diretor de conteúdo do SporTV. Enquanto se move, o espectador pode ver atrações como o Pão de Açúcar, a Igreja da Candelária, o Cristo Redentor e a ponte Rio-Niterói. Em relação à Copa da África, em 2010, o número de unidades móveis de transmissão aumentou de uma para oito e a equipe se multiplicou por dez: de 60 para 600.
A ESPN Brasil montou uma sala de guerra há três anos para ajudar na recepção dos canais internacionais do grupo durante a Copa. Nos próximos dias, o canal será o anfitrião de quase 500 profissionais da ESPN dos Estados Unidos, do México e da Argentina, diz João Palomino, diretor de jornalismo. Cinco caminhões de transmissão foram contratados para ajudar na cobertura. A aproximação com a ESPN americana acelerou a implantação de projetos em várias áreas, afirma Palomino, e vai permitir uma troca de conteúdo e talentos com os canais internacionais do grupo.
A RBS, que retransmite o sinal da Globo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, investiu R$ 40 milhões em equipamentos e na realização de eventos ao vivo relacionados à Copa, informa Marcello Rech, diretor executivo de jornalismo e responsável pela coordenação geral da Copa no grupo. A empresa construiu um estúdio de vidro próximo ao estádio Beira-Rio, para onde vai transferir temporariamente parte das transmissões. Além disso, adquiriu duas unidades móveis de transmissão via satélite e três de micro-ondas, além de 22 câmeras digitais. Essa renovação custou R$ 10 milhões, parte do pacote maior de investimento. O objetivo é dar mobilidade à equipe e reforçar a cobertura de temas locais relacionados aos jogos, como a meteorologia e as condições de trânsito, além de criar reportagens que possam ser usadas na programação nacional, diz Cezar Freitas, gerente-executivo da RBS.
Ao que tudo indica, essa também será a Copa da tecnologia e da interatividade. Nos estúdios da Rede Globo, no bairro carioca do Jardim Botânico, homens vestidos com estranhos macacões vão dar vida a figuras virtuais com o rosto e o corpo dos craques do torneio. Uma equipe de desenvolvedores de seis pessoas criou modelos em 3D de 70 jogadores – todos os integrantes da seleção brasileira e os principais nomes dos times rivais –, além de cópias digitais dos estádios da Copa. Os recursos atualizam inovações que a Globo já havia usado no ano passado, na Copa das Confederações. Uma delas é uma espécie de mesa de botão digital na qual apresentadores e comentaristas analisam as jogadas. Os bonequinhos correm pelo campo diminuto, como se fossem holografias. Agora, o apresentador poderá “puxar” um jogador para fora da mesa e fazê-lo ganhar vida no estúdio. Na verdade, trata-se de um ator, cujos movimentos são captados pelo computador por meio da roupa especial. O ator é, então, “vestido” com a pele do jogador virtual. Com isso, o que o espectador verá na tela é uma versão digital de estrelas como o brasileiro Neymar, o argentino Messi ou o português Cristiano Ronaldo. “Usamos tecnologias que já são empregadas no cinema e nos videogames, mas que até agora nunca haviam sido aplicadas à TV”, diz José Manoel Marino, diretor de tecnologia para jornalismo e esporte da Globo.
Outra atualização é a do campo virtual montado em um estúdio de 200 metros quadrados. O recurso combina o uso de câmeras virtuais e reais. Ao mostrar uma visão panorâmica do estádio, a câmera é virtual. Isso vai até a aproximação de uma área do campo, onde entra o comentarista de carne e osso. A partir daí, funcionam câmeras reais. Até o ano passado, os jogadores virtuais ficavam parados depois que o comentarista ingressava no campo. Agora, eles continuarão se movendo, com a possibilidade de interagir com o apresentador. Os jogadores que forem convidados a repetir um lance ou fazer um comentário serão atores vestidos com a roupa especial. Os demais, que só vão compor o cenário, serão puramente virtuais. “Conferir movimento parece uma coisa simples, mas é bem difícil, porque tem de ser natural, não pode parecer robótico”, afirma Marino.
Com o avanço das vendas de tablets e smartphones, os grupos de comunicação também têm investido na renovação de seus braços digitais e na interatividade. “Nosso site e os diversos recursos que o leitor encontrará nele – um jogo exclusivo, vídeos didáticos, tabelas animadas e narrativas de jogos ao vivo – demandaram investimento, tanto em pessoal como em tecnologia”, diz Dávila, da Folha.
No novo site de O Estado de S. Paulo, os comentários dos leitores, um recurso que estava desativado havia cinco anos, voltaram a ser exibidos. O Globo também colocou um site renovado no ar, com duas áreas em destaque, diz Chico Amaral, editor-executivo. Em março, um grupo de mídia social reformulado entrou em ação para descobrir maneiras de estimular a leitura das reportagens da publicação nas redes sociais e, ao mesmo tempo, acompanhar as conversas mais frequentes, para tirar possíveis sugestões de pauta dessas interações. A segunda iniciativa foi a criação de um núcleo de vídeo, com a abertura de dez vagas.
Princípios de comportamento
Entre os grupos de mídia, o consenso é que os investimentos na cobertura da Copa no Brasil eram inevitáveis para oferecer a qualidade esperada por leitores, ouvintes e espectadores. A decisão de antecipar ao máximo os projetos ajudou na aprovação de orçamentos maiores, sem sobressaltos de última hora. Essa aceitação não significa, porém, que a Copa seja necessariamente um mau negócio. A Rede Globo fechou o que a própria empresa classifica como um dos maiores pacotes do mundo com o patrocínio da Copa. Foram vendidas cotas de R$ 179,8 milhões para oito companhias – Ambev, Coca-Cola, Itaú, Johnson & Johnson, Hyundai, Magazine Luiza, Nestlé e Oi. O pacote total é de R$ 1,438 bilhão.
Nas companhias jornalísticas, a reação também é positiva. “O departamento comercial está muito feliz com o interesse dos anunciantes pelo evento até agora”, diz Dávila, da Folha. No grupo Estado, afirma Gandour, já se percebeu um aumento do interesse de companhias estrangeiras por notícias, imagens e infográficos da Agência Estado.
Um estúdio temporário montado em Copacabana, entre a areia da praia e o icônico calçadão, com o Cristo Redentor ao fundo, mostra as possibilidades de negócio proporcionadas pelo torneio. O estúdio foi erguido pela NewSource, agência criada pela Rede Globo há cerca de um ano. A proposta é oferecer serviços que vão de conteúdo até aluguel de unidades móveis, espaço de trabalho para jornalistas e as chamadas posições – um lugar com o fundo adequado e boa iluminação, para entradas ao vivo. Recentemente, a NewSource fechou um acordo com a Associated Press (AP), sob o qual parte desses serviços será fornecida.
O objetivo é atrair grupos internacionais que não têm os direitos de transmissão da Fifa – e, portanto, não contam com a infraestrutura da organização – ou emissoras de notícias, que não teriam motivo para gastar com a transmissão das partidas (e também não contarão com os recursos da federação de futebol). “As emissoras têm grande dificuldade para conseguir [espaço para transmissão via] satélite. Por isso, acabam usando recursos menos confiáveis, via internet, ou buscam agências como a nossa”, diz Leandro Valentim, diretor da NewSource. O estúdio de Copacabana vai fazer conexão por fibra óptica até uma central da AP em Washington, de onde o sinal poderá chegar a qualquer lugar.
Desde a Copa das Confederações, no ano passado, a lista de clientes da NewSource tem aumentado, com demandas em várias áreas, não só esportes. Entre as companhias que já usaram os recursos estão a britânica BBC, as americanas NBC, CBS e CNN e a al Jazira, do Oriente Médio. O próximo passo, afirma Valentim, é tornar a agência uma base de apoio para expandir o alcance internacional do Carnaval no Rio.
A Copa exige alguma mobilização até de veículos que normalmente não acompanham os esportes. O Valor, por exemplo, embora tenha vários jornalistas credenciados, fará uma cobertura mais fora do que dentro de campo. Além de acompanhar as prováveis manifestações, vai se mobilizar para ouvir os empresários e executivos de empresas globais que estarão no país em grande número para ver os jogos e, eventualmente, fazer negócios.
O fato de a Copa ser no Brasil dá asas a essa diversidade de assuntos. O SporTV, apesar de concentrado na área esportiva, terá 11 cineastas percorrendo o país para mostrar o comportamento da população de diferentes partes do país durante o torneio. O projeto, em parceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre, vai dar origem a uma série de documentários curtos que será exibida no fim do ano.
O que não sai do radar das empresas e profissionais de imprensa é a possibilidade de os protestos populares voltarem a crescer durante a Copa. Para muitos, as manifestações têm dominado os noticiários porque a bola ainda não começou a correr no campo. O cenário mais provável, segundo essa interpretação, é que o torneio passe a concentrar as atenções assim que começar efetivamente.
Os protestos, no entanto, já causaram uma modificação no humor dos brasileiros. Nos grandes centros, não se veem tantas ruas pintadas e bandeiras nas fachadas como em edições anteriores da Copa. “Ninguém tem certeza absoluta do que vai acontecer”, diz Alvaro Oliveira Filho, gerente executivo da CBN, que vai transmitir os jogos, a maior parte deles via internet. “Parece que todo mundo quer ver a Copa do Mundo, mas tem medo de dizer.”
Essa situação fez os grupos de mídia investirem em equipamentos de segurança para a cobertura de rua – inclusive, máscaras de gás, em alguns casos –, além de estabelecer princípios de comportamento para os jornalistas e outros profissionais de imprensa. A regra básica é não se colocar em situação de risco, mas, com a confusão que às vezes marca esses acontecimentos, isso nem sempre é fácil de evitar. O portal Terra registrou cinco casos de agressão a seus profissionais no último ano e um repórter da rádio CBN recentemente se viu no meio de um conflito entre a polícia e manifestantes. “Ele estava em segurança, mas não tinha como sair dali”, conta Oliveira Filho.
Os próprios jornalistas estrangeiros que estão chegando ao país têm estranhado o que consideram uma reação, até agora, morna da população, distante da combinação estereotipada de samba e futebol. Além de cara e superlativa, a Copa do Brasil tem merecido, por enquanto, um adjetivo inesperado para a terra do futebol-arte: moderada.
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João Luiz Rosa, do Valor Econômico