Nenhum jornalista e escritor brasileiro escreveu crônicas esportivas mais apaixonantes e apaixonadas do que Nelson Rodrigues (1912-80), publicadas durante mais de cinco décadas no matutino carioca O Globo sob o título de “À sombra das chuteiras Imortais”. Por isso, é, no mínimo, estranho que o padrão Fifa de qualidade tenha excluído sequer uma referência a Nelson Rodrigues na abertura da Copa do Mundo esta semana em São Paulo.
“À sombra das chuteiras imortais” não era uma simples crônica sobre futebol. Ali conviviam as emoções, paixões, espantos e sofrimentos de um passe mal dado e um chute mal aplicado; a leveza de um toque de bola que fazia um adversário rodopiar e um chapéu no próprio goleiro antes do chutaço fulminante para o gol implacável. Essas crônicas eram tão deliciosas que encantavam desportistas e não desportistas, como eu, enveredavam pelas famílias, onde pessoas compravam o jornal apenas para ler Nelson Rodrigues. Elas deram origem ao grande ficcionista-romancista que havia nele, revelado em vários romances de sucesso garantido para um público cativo.
Nelson Rodrigues é desses escritores pernambucanos com cadeira cativa como imortal da Academia Brasileira de Letras sem nunca ter ido lá. Uma companhia apaixonante de um Machado de Assis, ao lado de outro que deveria ter um trono permanente na ABL sem nunca ter pleiteado o assento, o saudoso jornalista escritor carioca Antonio Callado, autor do clássico Quarup.
O contexto do futebol brasileiro focalizado por Nelson Rodrigues, inspirador de tanto romantismo, era o do Brasil mais rural do que urbano, onde as pernas de Garrincha estonteavam os adversários e a velocidade de Pelé petrificava seus marcadores.
Torpedo político-ideológico
Expandiu-se, em meio século, de 3 bilhões para 7 bilhões a população mundial e o próprio esporte, em suas diversas modalidades, sofreu um profundo processo de mercantilização, criando-se um mercado do futebol, onde os melhores jogadores se convertem em milionários da noite para o dia. Foi nessa rápida transformação que, por não saber como administrar seu futebol e sua fama, no crepúsculo da carreira, Garrincha naufragou num oceano de exploradores, embora tenha encontrado refúgio no apoio de amigos que promoviam jogos para arrecadar fundos para socorrê-lo.
As viagens futebolísticas e romanescas de Nelson Rodrigues ao longo de sua vida jornalística e literária não impediram, entretanto, que saísse das suas entranhas o torpedo político-ideológico do seu filho, Nelsinho, que aos 20 anos, no auge da repressão política, se transformou num ativista contra a ditadura militar tão cultuada pelo pai.
Preso e torturado, Nelsinho recebeu 450 anos de cadeia da justiça militar, mas foi beneficiado pela anistia ampla, geral e irrestrita, que também beneficiou torturadores, que hoje gozam de gordas aposentadorias nas Forças Armadas.
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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor