Ganhamos cinco Copas do Mundo de modo indiscutível e, como dizia Nelson Rodrigues, insofismável. Na maioria das vezes, de modo devastador como em 58, 62 e 70. Essas vitórias todas, entretanto, não foram na terra brasileira, mas “lá fora”, como se dizia quando o mundo ainda era grande e desconhecido.
Havia quem pensasse que Paris era a capital da Europa e que a Inglaterra era um continente. O ponto de vista reverso arrolava Buenos Aires como capital do Brasil. Eis um país desconhecido no qual se falava espanhol ou um idioma desconhecido, “o brasileiro”, como disse uma senhora inglesa com um ar sério e douto, muito apropriado aos britânicos, num programa de televisão da BBC realizado dos anos 80, sobre o Brasil, no qual eu contribuí com o lado interpretativo. Nele, além de obviedades como racismo, favor, malandragem, clientelismo e música, falávamos desse futebol que evoluiu do “jeitinho” (que iguala) para o “você sabe com quem está falando?” (que suprime o reconhecimento do outro) dos pentacampeonatos.
Foi o futebol que – ao lado da Bahia de Jorge Amado, do cinema de Glauber Rocha e Cacá Diegues e da bossa nova de Tom Jobim – nos tirou da vala comum de um povo sem mapa, para nos reordenar num lugar superior no tal “concerto das nações” de que eu tanto ouvia falar e, menino, cheguei a pensar que era uma orquestra a tocar a melodia triste de duas guerras mundiais e holocaustos promovidos pelos nazismos e stalinismos. A partir de 50, porém, o futebol consolidou o Brasil como dono de uma invejável cronologia futebolística.
Curioso, para quem não pensa que, tanto no esporte quanto na democracia, derrota e vitória são os lados de uma mesma moeda, que tenhamos sofrido uma devastadora perda justamente na Copa jogada no Brasil. É meu palpite que o jogo “em casa” fazia a mágica de suprimir no nosso mapa mental uma eventual derrota. A lição da Copa de 1950 foi que, no esporte, como na vida igualitária, há perdedores e vencedores, o que não significa que os primeiros são inferiores aos segundos. É a partida, na sua dinâmica e feroz realidade, quem diz – tal como sucede no mercado e nas eleições – quem é o vencedor.
A santa paz
Perdemos então, em 50, a Copa no Brasil.
Copa, vale mencionar, que é também um espaço próximo da cozinha onde as louças nas quais comemos são guardadas e é um vaso covo onde bebemos líquidos e se refere à parte superior das arvores e do chapéu. Ademais, a expressão “fechar-se em copas” fala de uma pessoa amuada tal como ficamos em 1950 quando os nossos hermanos uruguaios levaram a Copa e nós nos fechamos chorosos na derrota. Mas, em 1958 e 1962, renascemos nesta mesma taça que acabou sendo nossa em 1970. Fomos seus ganhadores materiais definitivos, mas a perdemos vergonhosamente para ladrões que, corre o mito, venderam o seu ouro devidamente dissolvido no mercado das copas abandonadas por suas burocracias.
Tudo isso para, com Ruy Castro, recordar que as taças eram mesmo copas ou copos elaborados, com os quais se bebia algo valioso ou sagrado. Não sei se por pedantismo ou palpite (provavelmente pelos dois), não deixo de associar as taças (ou copas) nas quais o time vencedor bebia o champanhe ou o vinho da vitória ao Santo Graal. Aquele cálice sacrossanto usado por Jesus Cristo na Última Ceia, no qual José de Arimateia (um rico senador e cristão secreto) colheu – diz a lenda – o sangue do Salvador quando ele recebeu o golpe final de um decurião romano.
Sabe-se que o cálice faz parte de uma teia de lendas célticas que falavam no Rei Artur e numa idealizada e protodemocrática Camelot, cujo centro era a busca de objetos que simbolizavam a superioridade, legitimando-a. Nessa busca surgem a espada, a coroa (transformada em halo nos santos) e a copa – todos ligados à pureza de coração e à espiritualidade enobrecedora. Artur, dizem os mitos, tira sua espada de uma pedra ou a recebe da Dama do Lago. Eis o que todos procuram, mas que a Dama do Lago somente entrega a um craque escolhido. Do mesmo modo, o Santo Graal, que significaria “sangue-real”, traria paz e prosperidade para o reino.
Para nós, pentacampeões, a taça da vitória que hoje é um pesado troféu, um tanto cafona na sua ostentação aurífica, seria a prova de que o nosso sangue mestiço é nobre, e não o testemunho de fatal inferioridade. Ganhar a Copa no Brasil, em pleno território nacional, portanto, resgataria a tal prosperidade e a santa paz prometida pelo velho populismo esquerdista que, cada vez mais corrupto e dissimulado, tem desonrado muita coisa, menos – assim espero – o futebol.
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Roberto DaMatta é antropólogo