No tempo em que se viajava de trem por quase todo o Brasil, no tempo em que tínhamos uma considerável malha ferroviária, em certas ferrovias com nível de Primeiro Mundo, nesse tempo os fazendeiros paulistas produtores de café costumavam ir assiduamente a Santos para negociar o produto de sua colheita. Levavam latinhas redondas contendo amostras do café beneficiado em suas fazendas para serem avaliadas pelos corretores que tinham experiência e olfato espantosos. Uma simples cheirada num punhado de grãos era suficiente para detectarem em segundos as virtudes e deficiências dos grãos da “Coffea arabica” que, da cor esverdeada antes de torrados e moídos, se converteriam no pó marrom que, acrescido à agua fervida e depois coado, era a bebida mais consumida no mundo, mais até que a Coca-Cola, segundo meu pai, Juca Homem de Mello, fazendeiro em Itatinga, no interior do Estado.
A viagem de trem no vagão dos fazendeiros era uma animada reunião própria dos que, tendo atividade e gosto em comum, não conhecem limite para pôr fim a uma conversa.
O momento mais empolgante para um passageiro de primeira viagem era a descida da Serra do Mar, quando se usava um engenhoso sistema denominado “locobreque”. Por meio de um cabo engatado na locomotiva à frente dos vagões a partir da estação de Paranapiacaba, no alto da serra e em outros pontos do trajeto freava os vagões na descida e os empurrava na subida, proporcionando velocidade e segurança sob controle absoluto. Como nos funiculares, enquanto uma composição descia outra subia simultaneamente, de modo que o esforço desta era minimizado pelo peso da outra que se deslocava em direção à Baixada.
Se os fazendeiros, acostumados a ir e voltar no mesmo dia, não davam a mínima atenção à manobra, para mim era um momento de ansiedade nas vezes em que acompanhei meu pai no trem da São Paulo Railway, a concessionária inglesa conhecida como SPR.
Em Santos ele me apresentava a corretores com quem negociava. Um deles, o senhor Ralph Brunssen, era um americano muito simpático que falava sem sotaque e um outro, o senhor Luiz Martins, foi de sua inteira confiança por muitos anos. Meu encontro mais marcante com os que sabiam negociar o café brasileiro para o exterior se deu quando papai me levou à casa de outro renomado corretor de café, na avenida Manoel da Nóbrega, 447, em São Vicente. À minha frente estava quem, nos anos 20, fora um dos maiores jogadores do Club Athletico Paulistano, o meia-direita e capitão do time Mário de Andrada. Com A no fim e não com E, embora seu sobrenome fosse frequentemente grafado como o do conhecido musicólogo e escritor Mário de Andrade. A de Andrada e Silva em virtude de sua descendência de José Bonifácio.
Pela lógica, como sua atuação no futebol se dera antes da primeira Copa do Mundo de 1930 no Uruguai, qualquer referência de repercussão internacional que ele e outros grandes jogadores brasileiros do futebol amador pudessem desfrutar deveria ser nenhuma. No entanto, nos anos 20, antes da declarada admiração no exterior por jogadores brasileiros como Leônidas da Silva e Domingos da Guia na Copa de 1938, por Pelé e Garrincha na de 1958, jogadores brasileiros já haviam sido apelidados “Les rois de football” atuando na França. Foi quando o esquadrão de futebol do Paulistano realizou uma inédita e consagradora “tournée” por gramados do Velho Mundo.
Arthur Friedenreich deixou franceses, suíços e portugueses impressionadíssimos com a agilidade de sua fintas surpreendentes e os “rushs” de fenomenal goleador. Mário de Andrada, apelidado Menino de Ouro em 1919, também foi muito elogiado pela imprensa europeia, tendo sido o segundo artilheiro com oito gols nessa primeira temporada de um clube de futebol por gramados da Europa, a pioneira iniciativa do próprio presidente do clube, Antônio Prado Junior. Foi um marco no esporte brasileiro.
O vapor Zeelandia do Lloyd Real Holandês zarpara em 10 de fevereiro de 1925 do porto de Santos levando a bordo 19 jogadores, alguns com suas mulheres, dois jornalistas e dirigentes formando uma delegação de 26 pessoas rumo ao porto de Cherbourg, na França. Após 18 dias no Atlântico, o grupo seguiu de trem para Paris hospedando-se no Hôtel Mont-Thabor, na place de La Concorde, treinando em Saint-Cloud enquanto aguardava o jogo da estreia.
Em 15 de março, no estádio Buffalo, sete jogadores do time titular do Paulistano com quatro reforços (Nestor e Barthô do São Bento, Araken do Santos e Netinho do Flamengo), escalados pelo ex-jogador Orlando Pereira, entraram com seu fardamento branco num campo enlameado de neve que, apesar de provocar escorregões a torto e a direito até que se acostumassem ao terreno, não impediu que os brasileiros derrotassem a seleção francesa pelo expressivo “placard” de 7 a 2. No dia seguinte, “Le Journal” descrevia detalhes sobre a “vitória indiscutível, muito superior à que os uruguaios obtiveram há oito dias sobre o quadro de Paris… são mais perigosos, mais eficientes pelo seu jogo fogoso, ardente e insistente em passes rápidos, seguros e em investidas excessivamente velozes que deixam estupefata a defesa adversária…” E arrematava: “Os brasileiros são os reis do football”.
Ao fim da excursão, descrita em detalhes no livro do meia-esquerda Araken Patuska, o Paulistano havia perdido um única partida nas dez pelejas disputadas em 43 dias pela França, pela Suíça e por Portugal. Friedenreich, o dianteiro apelidado de El Tigre pelos jornalistas uruguaios no Campeonato Sul-Americano de 1919 em Montevidéu, foi o artilheiro da excursão, com 11 gols.
Para mim, que sabia de cor a escalação do time do Paulistano na contenda da estreia em Paris (Nestor, Clodô e Barthô; Sergio, Nondas e Abate; Filó, Mário, Fried, Araken e Netinho), foi inesquecível apertar a mão de Mário de Andrada, conhecê-lo pessoalmente quando apresentado por meu pai. Pele bem morena e cabelos lisos penteados para trás sem repartir, aquele senhor simpático em nada lembrava um dos maiores ídolos da época do nosso futebol amador.
São Paulo nos anos 20
Desde 1919 o “football” paulista era acompanhado de perto pela revista paulista “Sports”, vendida a 1$500 (1 mil e 500 réis), editada por Netto & Rasmussen (Américo R. Netto na redação e Thorwald Rasmussen como diretor artístico) com sede no segundo andar do prédio da rua São Bento, 66-A. Naquela época os “telephones” da cidade tinham apenas três algarismos, já existiam o chocolate Lacta, o bálsamo Gelol, o peitoral calmante Silva Araujo contra tosse, o magazine Mappin & Webb na rua 15 de Novembro, 28, anunciando variado sortimento em artigos de prata, bem como a Casa Kosmos, que oferecia suas gravatas, e a Casa Turf, suas lindas camisas. Um automóvel Dodge Brothers, aclamado por ter feito o “raid” Rio-São Paulo em dez dias, podia ser importado por intermédio da firma Antunes dos Santos, ao passo que um Studebaker 6 Ligeiro, idêntico ao que realizara viagem de ida e volta ao bairro do Leblon consumindo em média um litro de gasolina para cada 9.100 metros do percurso, podia ser adquirido por meio de Gustavo Zieglitz, estabelecido na rua dos Andradas.
“Clubs” paulistas
Às margens do rio Tietê os “clubs” paulistanos, pitorescamente alcunhados de “ninhos de athletismo”, eram frequentados em sua maioria pelos que se dedicavam à prática do remo no Club Esperia, fundado por italianos em 1899, ou no Club de Regatas Tietê, fundado em 1907, ou ainda na Associação Athletica São Paulo, de 1914, cujas sedes eram próximas da Ponte Grande, mais tarde Ponte das Bandeiras. Além do automobilismo e do motociclismo, praticava-se na cidade o “hippismo” na Sociedade Hippica Paulista, em Pinheiros, o ciclismo no Velódromo, o “tennis”, o “fashionable hockey” sobre patins e o avassalador “football”, o esporte mais difundido em várias classes sociais. Monopolizava as atenções por ser, segundo a “Sports”, “um jogo barato, podendo ser praticado com interesse e prazer em qualquer lugar e a qualquer tempo… proporcionando hora e meia de diversas e intensas emoções e, por ser de fácil compreensão, o futebol fez o que nenhum outro esporte faria no Brasil”.
Não pois sem razão o “football” foi o que mais rapidamente se expandiu com denominações adaptadas à fonética da língua de cada país, a mais curiosa das quais é a italiana, cuja agremiação dirigente se intitulava Federazione Italiana del Gioco del Calcio, o jogo do pontapé. Vale lembrar que apenas na Copa do Mundo de 1930 no Uruguai cada tempo de jogo passou a ter 45 e não mais 30 minutos.
Campeonato Paulista
Nos anos 10 o time de “football association” mais vitorioso na Liga Paulista foi o do Club Athletico Paulistano, que nasceu na reunião realizada em 30 de novembro de 1900 na rua São Bento por um grupo de brasileiros desejosos de ter um “club” paulistano independente dos que já existiam e eram comandados por ingleses ou alemães. Suas cores eram vermelho e branco, ao passo que o fardamento dos “players” era constituído de blusas brancas de manga comprida, tendo o escudo circular no peito esquerdo, e calções também brancos e amarrados com uma fita vermelha.
Desde 1902 o campeonato em São Paulo era organizado pela Liga Paulista de Football com partidas disputadas nos gramados dos dois principais estádios da cidade: o Parque Antártica, que, tendo sido construído para o lazer dos funcionários da fábrica de bebidas Companhia Antarctica Paulista, era alugado para os “matches”; e o Velódromo de São Paulo, criado por Veridiana Prado na região da atual rua Nestor Pestana, cuja arquibancada podia abrigar até mil pessoas e seria demolido em 1917.
Como consequência de uma cisão na liga, foi criada em 1913 a Associação Paulista de Sports Athleticos, e os dois campeonatos paulistas simultâneos tiveram dois vencedores: Corinthians e Paulistano. Fundado na rua José Paulino por rapazes, entre os quais alguns empregados da São Paulo Railway – que decidiram dar a seu “club” o nome de Corinthians Paulista, em homenagem ao “team” de futebolistas ingleses que excursionara pelo Brasil naquele ano, 1910 –, o Corinthians foi novamente campeão em 1914 e 1916 pela liga e na década de 20 alcançou um tricampeonato pela Apea (Associação Paulista de Esportes Atléticos), de 1922 a 24. O Paulistano levantou a taça sete vezes na década de 10, incluindo o inédito tetracampeonato seguido – 1916, 17, 18, 19 –, proeza não igualada até hoje em São Paulo. Na década de 20, em que ainda atuou no futebol amador, venceu mais dois.
Embora com menos títulos, também participaram do campeonato paulista no período de amadorismo a Associação Athletica São Bento (campeã em 1914 e 1925), a Associação Athletica das Palmeiras (campeã em 1909, 1910 e 1915), a Associação Athletica Mackenzie College, o Sport Club Internacional (campeão em 1928), o Club Athletico Ypiranga, o Sport Club Syrio e o Santos Football Club. Mais expressivo que esses seis era, porém, a Società Sportiva Palestra Italia, criada com apoio da Casa Matarazzo em 14 de agosto de 1914 por elementos da poderosa colônia italiana, animados com o êxito da visita de dois clubes italianos a São Paulo, o Torino e o Pro Vercelli. Com o prestígio da coletividade italiana o Palestra Italia disputou o torneio desde 1916 para tornar-se vitorioso por duas vezes nos anos 20.
A rivalidade, geradora de uma popularidade inusitada no “football” paulista, entre Corinthians, Palestra e Paulistano, ganhadores da quase totalidade dos títulos disputados nas décadas de 10 e 20, nasceu em 1917, quando cada um dos três foi se definindo pela vertente de suas origens. Se para a elite o “football” era um evento social no qual as famílias tradicionais se encontravam, para os grupos imigrantes poderia ser a vitrine de exposição no processo de ascensão social. Para a classe menos favorecida representava o espaço de lazer inteiramente ao seu alcance em todos os sentidos. Dessa forma, os campos de “football” foram ocupando espaços dominantes como símbolo de sociabilidade despojada comum a todos os praticantes e torcedores.
Paulistano
Ostentando seu tetracampeonato, o Paulistano disputou em 1920 no Rio a Copa dos Campeões que pode ser considerada a precursora do campeonato brasileiro. Era um triangular reunindo no estádio das Laranjeiras os três campeões dos torneios estaduais carioca, gaúcho e paulista. No prélio final, em 28 de março, o Paulistano triunfou sobre o Fluminense pelo “score” de 4 a 1, com dois gols de Mário de Andrada, um de Friedenreich e outro de Botelho, ganhando a Copa. Meu tio Arnaldo Motta era o “goal-keeper” do esquadrão alvirrubro, tendo embarcado com seus companheiros de equipe na Estação do Norte no Brás, portando chapéu de feltro, terno claro, gravata-borboleta e calçando finas botinas de cano médio de couro com ilhoses de gancho para o cadarço. Tudo combinando com a elegância típica dos integrantes da esquadra paulistana.
No gramado, sob o arco, tio Arnaldo envergava uma grossa malha branca canelada de gola “roulée”, tendo no peito o escudo circular do “Glorioso” esquadrão do Jardim América, onde o clube ainda mantém sua sede. Depois dele, quem ocupou a posição foi Kuntz, que em 1925 deu lugar à nova revelação do esquadrão do Paulistano, o menino prodígio Nestor, com quem tive a honra de privar da amizade em frequentes encontros no próprio bar do clube. Não suficientemente alto para a posição de guardião, Nestor de Almeida era então um senhor tranquilo e gentil de quem ouvia encantado as peripécias da fantástica excursão do Paulistano à Europa e de sua atuação nos cinco últimos anos da atividade no “football association” do Paulistano. Nestor foi campeão paulista pela última vez em 1931, mas por outro “club”, o São Paulo da Floresta, como ficou conhecido o São Paulo Futebol Clube constituído quando o “football” amador foi profissionalizado.
São Paulo Futebol Clube
Inconformados com a decisão da diretoria do Paulistano em não aderir ao profissionalismo e extinguir o departamento de futebol amador, alguns associados e jogadores do time, entre os quais a grande estrela do futebol brasileiro Friedenreich, decidiram em 1930 fundar uma agremiação para manter viva a tradição do “football” do “club” que tantas glórias havia conquistado. Conhecedores da decadência e das dificuldades financeiras enfrentadas por outro “club” da elite paulistana, a Associação Athletica das Palmeiras, o grupo propôs uma união que satisfaria ambas as partes, pois o que faltava para os proponentes da futura agremiação era um campo de treinamento. Como a A.A. das Palmeiras corria risco de perder seu pequeno estádio próprio, dotado de bom gramado e arquibancadas de madeira para 15 mil pessoas na Chácara da Floresta, imediações da Ponte Grande, a fórmula poderia preservar a tradição futebolística das duas agremiações. Após várias prévias entre palmeiristas e paulistanos, chegou-se à decisão que iria resultar na sobrevivência dos dois expressivos times do “football” da cidade. Aceito por unanimidade, foi fundado em janeiro de 1930 um novo grêmio no cenário do futebol paulista, o São Paulo Football Club.
Com a conservação das duas cores originais do Paulistano, o vermelho e branco, e o branco e preto do Palmeiras, cujo uniforme principal era camisa branca com faixa horizontal preta, veio à tona a inspiração para a original camisa do novo “club”: branca com duas faixas horizontais, a preta palmeirista e a vermelha paulistana separadas pelo fundo branco. O distintivo triangular no centro do peito completou os emblemas do primeiro e único time tricolor do campeonato paulista, aquele cuja camiseta é apropriadamente mantida tal e qual até hoje. Contando desde sua fundação com um poderoso esquadrão cuja estrela era Friedenreich, o novo clube iniciou suas atividades auspiciosamente: vice-campeão no seu primeiro ano, foi campeão em 1931 e novamente vice em 1932, 33 e 34.
Em 1934, problemas financeiros advindos da aquisição de uma luxuosa sede, o Trocadero, na rua Conselheiro Crispiniano, bem como desavenças e uma fusão inconveniente justificaram “démarches” para que em dezembro de 1935 o “club” fosse refundado com o objetivo de preservar uma tradição de êxitos e abrir o novo caminho de glórias. E seria, anos depois, o primeiro clube a eleger como presidente um ex-jogador de sua equipe, o arqueiro Roberto Gomes Pedrosa.
Neste ano de Copa do mundo no país dos reis do futebol desde 1925, os tricolores podem almejar que isso venha a ocorrer mais uma vez, quando seu idolatrado guarda metas se despedirá da posição. Em anos próximos ele poderá vir a ser o presidente Rogério Ceni.
[Agradecimento especial a Luiza Andrada, neta do meia-direita do Paulistano, o extraordinário Mário de Andrada.]
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Zuza Homem de Mello é são-paulino desde menino. Aos 9 anos, assistiu a seu primeiro jogo do tricolor no Pacaembu, São Paulo 2 X Comercial 1, em 18 de julho de 1943. Naquela tarde, encostado no alambrado, viu pela primeira vez o arqueiro King, o argentino Don Antonio Sastre, o craque Leônidas da Silva. Com sua camiseta de três listas horizontais, calções e meias brancas, o tricolor que seria campeão jogou com King, Piolim e Florindo; Zezé Procópio, Zarzur e Noronha; Luizinho (capitão), Sastre, Leônidas, Remo e Pardal, o ponta-esquerda que usava um par de chancas de cor bege.