Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O gol mais patético da história

Esta semana [passada] a seleção chilena comandada pelo técnico Jorge Sampaoli fez história ao eliminar de forma acachapante e inapelável a Espanha, atual campeã mundial. Fiel à filosofia de atacar sem medo introduzida pelo seu antecessor Marcelo Bielsa, Sampaoli dá sua receita. “Você procura incutir nos jogadores um amor à camisa feito de contentamento, não de obrigação”, diz ele. “Na sociedade individualista em que vivemos você só tem êxito se estiver comprometido com algo intangível.”

É provável que para seleções de outros países essa peroração não faça sentido algum. Mas é com ela que Sampaoli vem convencendo seus jogadores de que eles são tão bons quanto qualquer outro time – mesmo quando perdem. E é com esse estado de espírito que La Roja vai entrar em campo se tiver de enfrentar o Brasil.

O última vez que o futebol do Chile fez história foi de forma aberrante e patética. Através dela pode se medir o tamanho do caminho percorrido até hoje.

O episódio data de 40 anos atrás. Restando uma última vaga ainda aberta para o Mundial de 1974 na Alemanha, ela seria disputada entre o Chile e a União Soviética. A seleção com maior saldo de gols ficaria com a vaga.

“Tranquilidade total”

O primeiro dos dois confrontos seria no Estádio Lênin, em Moscou. Os chilenos haviam agendado uma série de amistosos no exterior para chegar tinindo na URSS, país ainda amigo. Tinham voo marcado para as 10 horas da manhã do 11 de setembro de 1973.

Naturalmente ninguém embarcou. Àquela hora o golpe militar contra o governo socialista de Salvador Allende já asfixiava o país e às 11h o bombardeio do Palacio de la Moneda por aviões da Força Aérea soterrava as últimas dúvidas.

A partir daí o Chile da véspera deixou de existir e o país que brotou do golpe era o seu avesso, comandado pelo general Augusto Pinochet. Onze dias depois a União Soviética rompia relações diplomáticas com o novo regime. Eram, agora, inimigos nos moldes ideológicos da Guerra Fria.

Mas se quisesse disputar a vaga do Mundial a seleção chilena teria que ir a Moscou. Todos sabiam que o ambiente, lá, lhes seria hostil, mas para dois jogadores o receio era outro: identificados como simpatizantes do governo Allende, o artilheiro Carlos Caszely e o zagueiro Leonardo Véliz temiam viajar deixando para trás seus familiares. No caso de Caszely os temores foram justificados: teve a mãe presa e torturada tempos depois.

O selecionado embarcou via Buenos Aires, fez escalas em São Paulo, Rio, Panamá, México e Suíça, e desembarcou tenso, com receio de serem feitos reféns em troca de presos políticos comunistas.

Nada aconteceu além de um jogo gelado que, para desalento soviético, terminou zero a zero.

A revanche no Estádio Nacional de Santiago fora agendada ainda no governo Allende, antes, portanto, de o campo ter sido transformado em centro de detenção e tortura de opositores ao golpe. Estima-se que perto de 40 mil pessoas passaram algum tempo detidas no Nacional.

Preocupados com o uso dado à arena esportiva, as autoridades do futebol chileno perceberam ser impossível realizar ali um jogo de qualificação para a Copa. Propuseram ao comandante da Força Aérea a transferência do evento para Viña del Mar, pois a União Soviética já ameaçava fazer forfait caso o estádio não passasse por uma inspeção prévia da Fifa.

Pinochet, contudo, insistiu em manter a agenda original. Achava que assim desanuviaria as suspeitas de tortura, cada vez mais substantivas, e autorizou a vinda de uma comissão da Fifa. Foram dois os inspetores enviados para dar o veredito final: o suíço Helmuth Kaeser, secretário-geral da entidade, e o brasileiro Abílio de Almeida, vice-presidente do Comitê de Arbitragem da época. A dupla circulou pelo campo, viu figuras estranhas nas arquibancadas, mas não achou nada estranho.

Explica-se. Dezenas de presos políticos haviam sido amontoados nas cabines dos vestiários; sinais de sangue e vestígios de tortura haviam sido maquilados; e o lote maior de detidos tinha sido despachado para um centro de detenção fora de Santiago. “O relatório que levaremos às autoridades da Fifa será o reflexo do que vimos: tranquilidade total”, declararam Kaeser e Almeida à imprensa. Antes de partir, o brasileiro ainda aconselhou seus interlocutores militares a não se preocupar com a campanha da imprensa internacional contra o Chile. “Aconteceu o mesmo com o Brasil, mas passa logo”, teria dito. Abílio de Almeida recebeu a Ordem do Mérito brasileiro em 2000 e morreu em 2001.

Homenagem aos prisioneiros

Confirmado o jogo pela Fifa, a federação soviética informou que não jogaria num local onde se matava e torturava supostos opositores do regime, ponto. Segundo uns, foi o ucraniano Oleg Blokhin – artilheiro do Dínamo por 18 anos, eleito Melhor Jogador da Europa em 1975 – quem liderou o boicote dos jogadores e pressionou o Kremlin pelo cancelamento. Segundo Evgeny Lovchev, zagueiro do Spartak e membro da seleção soviética, a URSS havia ficado humilhada com o empate em casa e não queria arriscar uma derrota.

De todo modo, pelo regulamento, o default do adversário automaticamente dava a vitória ao Chile. Só que Pinochet insistiu em manter a coreografia.

E assim, no horário previsto pelo calendário da Fifa, La Roja e o árbitro Rafael Hormazábal entraram em campo no dia 21 de novembro perante um publico pagante de 28 mil chilenos. Houve apresentação do hino nacional e içamento de bandeira. Apito, pontapé inicial e os jogadores do único time em campo avançam lentamente pelo gramado, trocando passes. Quando um dos atacantes chega na linha da pequena área, ainda aguarda o posicionamento ideal dos fotógrafos e chuta com a direita para a trave vazia. Jogo encerrado . Vitória do Chile por 1 a 0.

No Mundial de 1974 a seleção chilena foi eliminada já na primeira fase, sem vitórias. Pinochet ficou no poder até 1990. A União Soviética implodiu no ano seguinte. Em 2011, o Chile redemocratizado prestou homenagem aos prisioneiros do Nacional mantendo intacto um setor da velha arquibancada de madeira. O singelo memorial salta aos olhos no estádio renovado.

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Dorrit Harazim é jornalista