“Foi gol.” “Não foi, não, foi alta.”, “Não, foi baixa, foi gol.” “Não foi nada, vocês estão roubando…”
Trechos memoráveis de violenta discussão entre Carlinho Boca-de-Véia, o Carlos Miguel Araújo, hoje aposentado da Petrobras em Campinas (SP), e Mirtinho Chupa-Dedo, o Milton Vanius de Almeida, atualmente médico em Juruaia (MG). O entrevero, ainda comum em campinhos de terra sem traves por este Brasil afora, aconteceu em pelada infantil ali por 1958 no recreio de nosso grupo escolar de Muzambinho (MG). Eu tinha sete anos e fui ali o que sou até hoje: torcedor, testemunha, observador, assistente.
Como quando sentimos um aroma que nos remete para uma situação vivida há décadas, ao ver na TV o primeiro momento dessa feliz e tão demorada “arbitragem tecnológica” da Fifa, durante o jogo França 3 x 0 Honduras, imediatamente também voltei no tempo. E me senti com menos de uma dezena de anos presenciando fantásticos clássicos sem traves da molecada de minha terra.
À época, o “campo” tinha dois tijolos como traves e o travessão era imaginário. Daí tantas as naturais discussões se a bola foi alta ou não, se foi gol ou não. E, creia, o chip do gol chegará também às peladas! Primeiro, aleluia, chegou em jogo de Copa do Mundo. Tinha que ser assim: é o único exemplo prático de cima pra baixo que realmente funciona. E funcionará destruindo as teses ridículas que venho há anos ouvindo contra a tecnologia no futebol.
Faz 50 anos que João Havelange garante absurdamente que o erro de arbitragem faz um bem danado para o futebol porque a polêmica do apito errado aumenta e perpetua a importância desse esporte como número 1 de todas as modalidades esportivas. Ora, isso é como defender a morte do carrapato por tiros mesmo estando ele na barriga da vaca.
E as bobagens que a tecnologia vai tirar o romantismo do futebol e que só será utilizada nas competições top? Outros dois enganos. Emplacando como já emplacou nesta maravilhosa Copa das Copas (sim, a Dilma, na bamba ou não, acertou na mosca!), todos os países, campeonatos, torneios e federações equipararão seus estádios com os óbvios, ótimos e tardios chips.
E o custo deles cairá na base do “quanto mais produzir, mais barato fica”. E, sim, acabou o romantismo do futebol, mas só aquele de ontem imaginado e ouvido pelo rádio e praticado por jogadores geniais que ficaram pobres pela inexistência do marketing esportivo em suas épocas.
Demonstração de justiça
Com o fim do “romantismo poético”, veio o “profissionalismo moderno”, mas não acabará nunca o fascínio dos povos pela bola. O futebol era e sempre será paixão, mas agora é também negócio. E não pode suportar mais tantos e infantis erros de arbitragem, hoje perfeitamente evitáveis, que mudaram para muito pior a vida, a história e o futuro de tantas seleções, países, times, jogadores e suas famílias.
Mas o chip da bola na linha do gol é muito pouco e agora a Fifa deve ampliar o raio de ação. Que venha o chip do impedimento! Sim, o impedimento, impossível de ser detectado corretamente em 100% pelo olho humano, faz mil vezes mais estrago do que o lance polêmico e raro da bola na linha do gol.
Assim, com um atraso secular, parabéns à morosa Fifa por seu chip do gol, mas ficam faltando o chip do impedimento, o chip do pênalti, o chip contra a compra de voto para eleição de sedes de Copa do Mundo e o chip do doping. Ou seja, atleta jogou dopado por um minuto ou o jogo inteiro, o time dele perde os pontos!
E as peladas perderão as discussões das bolas altas ou não, mas ganharemos novos craques que aprenderão desde cedo que o acerto do apito no futebol é uma sábia demonstração de justiça na vida.
Bem-vindo, democrático chip da bola, o símbolo de um esporte que forja caráter e saúde com base na disputa e sadia rivalidade.
Mesmo sendo ele, o futebol, “a coisa mais importante entre as menos importantes”!
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Milton Neves é jornalista e apresentador do programa Terceiro Tempo (Rede Bandeirantes)