Da imprensa brasileira pode-se dizer que os pés lhe subiram à cabeça. Não os próprios pés, não os pés da imprensa, mas os pés enchuteirados que dão de bico, de chaleira, de lambreta, de bicicleta, de chapa e de voleio em nome do País. Pés de jornalistas não dão conta disso tudo. Quando muito, vão sujar sapatos baratos em ruelas de terra e depois voltam para a redação orgulhosos da reportagem que palmilharam. Pés de jornalistas não chegam ao chinelo. Não, os pés que subiram à cabeça da imprensa não são os dela, mas os lúdicos pés do ludopédio.
A podolatria reinante faria corar o poeta Glauco Mattoso, aquele que ousou declarar amor ao chulé: “Não basta o pé, precisa ser fedido.” Diante do que estamos vendo, Glauco Mattoso não dá para o cheiro. Basta ver a adoração em torno das novas chuteiras do jovem atleta do time da CBF, de nome Neymar Jr., apresentadas na televisão no início da semana. São obscenamente douradas, como se fossem uma coroa – ou um par de coroas, melhor dizendo. Aliás, são mesmo coroas de verdade, coroas reais: não só por emularem a realeza das mais glamourosas monarquias, mas principalmente porque representam o que pode haver de mais material, de mais concreto ou de mais “real” naquilo que comumente chamamos de realidade: um par de pés.
O pintor Candido Portinari via nos pés de seus modelos a raiz materialista da humanidade. Gostava de representar seus trabalhadores braçais com mãozonas do tamanho de pés e pezões do tamanho de estádios. Se fosse retratar um jogador de bola hoje, talvez Portinari o enquadrasse apenas dos tornozelos para baixo. O novo par de “coroas” de Neymar Jr. é feito sob medida não para sua cabeça, mas para os seus pés (cujas dimensões simbólicas não caberiam nem mesmo numa tela de Portinari). No cocuruto ele usa apenas um penteado mutante que o faz parecido com alguém que anda de costas numa motocicleta a 200 quilômetros por hora (sem capacete, claro). Há luzes douradas nos cabelos de Neymar, mas o brilho que realmente conta lhe vai nos pés. No esporte a que nos referimos, como na classe operária de Portinari, gol de cabeça é exceção.
O aconchego ideológico do “nós”
Jornais, noticiários de TV, revistas e portais de notícias vão no mesmo embalo. Supostamente responsáveis por informar a sociedade com alguma (ou quase nenhuma) dose de isenção, com o tão decantado “distanciamento crítico”, vão aos poucos abrindo mão de seus parâmetros e se deixando embriagar pelo frêmito podofutebolístico. Espalhafatosamente. Fartamente. Aos olhos da imprensa, sem a menor dúvida, esta já é mesmo “a Copa das Copas”. Haja celebração.
Na primeira página dos diários, as tais letras garrafais torcem e distorcem. Zombam de atletas de times que não são o brasileiro (chamam o português Cristiano Ronaldo de playboy, por exemplo), enquanto se derramam em reverências, mesuras e genuflexões aos donos de pés titulares do time da CBF, vulgarmente chamado apenas de “o Brasil”. No telejornal, o apresentador adota a primeira pessoa do plural – “nós” – e assim se funde e se confunde com os protagonistas dos jogos e com a torcida pátria. Tal resultado, diz o âncora, “é bom para nós”. O artifício fácil de linguagem o ajuda a se irmanar com a “torcida inteira” (para usar aqui a expressão daquele jingle de um comercial de banco). O “nós” do telejornal quer dizer “nós, o Brasil”. Os “nossos” pés unidos jamais serão vencidos. Os pés somos nós, nossa força e nossa voz.
A mesma imprensa que se desdobra para cultivar a frieza e a objetividade em relação a qualquer acontecimento que seja – do assassinato torpe de crianças ao mais infame surto de corrupção, da tortura nas delegacias e nas UPPs às mais sádicas arbitrariedades de um eventual presidente do STF – não tem sido capaz de olhar como observadora crítica a massiva festividade industrializada (formatada pela publicidade) a que vulgarmente se chama de Copa do Mundo. É como se o seu próprio pensamento começasse a brotar dos pés coroados. A “podocefalia” apodera-se de todos os espaços. Pés pensantes viram sujeitos históricos. Em seu “balé de resultados”, fazem balançar as redes, fazem vibrar os corações, fazem “reacender as esperanças” etc. Pés com “astúcias de mãos”, alguém já disse, pés que “manejam” e “manipulam” o itinerário da bola e, consequentemente, manufaturam o andamento da “nossa” própria História (um “nossa” que, como se vê, inclui não só os profissionais do ludopédio e seus fãs em transe, como também os praticantes do jornalismo).
Claro: dos pés idolatrados depende também o destino dos políticos. Estes, com seu oportunismo de artilheiro, vão se precipitando dentro do “nós” do telejornal como aqueles devotos ocasionais de Iemanjá que se atiram nas águas do mar durante os festejos de ano-novo. Os candidatos à Presidência da República fantasiam-se de camisa amarela e fazem pose em dia de jogo. Um deles, Aécio Neves, apareceu numa fotografia de punho erguido e sorriso rijo assistindo pela TV a um jogo do time da CBF contra o México. Acontece que, durante a partida, não houve nenhum gol. O que, então, festejavam os fotografados? Foi mera encenação? A pergunta passou em branco pelos repórteres, ocupados demais em torcer “junto” com Aécio, dentro do “nós” totalizante. Podem não ter chuteiras na cabeça (isso seria demais), mas estão com a cabeça no mesmo par de chuteiras.
Lula e Dilma também se acomodam no “nós” esfuziante. O primeiro até declarou: “Nós vamos ganhar este caneco porque o Brasil está precisando” (Estado de S.Paulo, 25/6, página A4). Como é mesmo? O Brasil precisa? Ou são eles, do governo, que precisam? Quem é o “nós” que vai “ganhar o caneco”? E quem é “o Brasil” que “está precisando”? Ao se misturar com todos eles no aconchego ideológico do mesmo “nós”, a imprensa perde potência para ir atrás dessas perguntas, enquanto se deixa fascinar pelas chuteiras novinhas, douradas e dotadas de poderes mágicos.
******
Eugênio Bucci é jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM