A Babel diminuiu. A Copa entra na segunda fase sob a égide do espanhol, o idioma mais falado entre as seleções que passaram para as oitavas de final. O campeonato da Fifa é o maior evento planetário no qual o inglês não é a língua dominante. O idioma em que Donne disse que nenhum homem é uma ilha pode até ser o meio de comunicação principal entre jogadores, juízes, técnicos e torcedores, mas não passa de um acessório. A realidade do futebol está no corpo e nos gestos. Como a música, o sexo e a dança, ele não precisa palavras.
Não se aplica ao jogo o preceito evangélico de que no princípio era o Verbo. No princípio era o Ato. As palavras – o Verbo – não dão dribles, cobram faltas, marcam gols. O futebol é ação e não pensamento. As palavras vêm depois. Por isso, diz-se que o bom jogador pensa com os pés. Numa partida, as palavras não se articulam entre si, raramente formam sentenças, raciocínios, transmitem mensagens. Não que o silêncio predomine, como no tênis ou no golfe. Ao contrário, o jogo é dos mais ruidosos.
O atacante, o bandeirinha, o locutor, o torcedor – todos urram. Por mais organizada que seja, jamais foi vista uma torcida berrando na arquibancada que “a morte de cada homem nos diminui porque somos parte da humanidade”. Dentro e fora do campo, no Maracanã ou num altinho na praia, a interjeição é a figura retórica preponderante do futebol. Seu conteúdo são o calão e os impropérios.
O português é uma língua barroca
Apesar do monstruoso aparato material que cerca a Copa, da mercantilização que a engolfa, o coração primitivo do futebol persiste, é a sua graça. Ele continua mais perto da brincadeira do que do pensamento, da bola equilibrada à toa, só por prazer, do que das elucubrações de um comentarista. Daí que toda tentativa de interpretá-lo, de decalcar sabedoria do corre-corre de um bando de marmanjos atrás de uma bola soe sempre como afetação. Mesmo a mesa-redonda mais rasa parece imprópria, quase obscena. Ela é uma tentativa de injetar ideias n’algo que está aquém da linguagem, é arisco a filosofices, como Neymar caindo pela direita.
No entanto, sem linguagem não há futebol. O conjunto de regras que o rege deve ser acessível em todos os idiomas; os participantes precisam conversar entre si; as visitantes estrangeiras têm que se haver com os nativos, sobretudo para paquerar; é imperativo que as torcidas se indisponham verbalmente. Nada disso se faz sem chupar a misteriosa língua alheia. A comunicação entre as gentes vem se dando sem a necessidade de dicionários. Ao que parece, ela é feita no arremedo de inglês que faria Donne se enterrar numa ilha, para se por a salvo dos sinos (apitos?) que marcam as mortes da sua língua. Nunca mande saber por quem os sinos dobram.
Se o futebol prescinde de linguagem, e o inglês não precisa de quem o defenda, ainda assim o mundo seria melhor se em cada casa houvesse um exemplar do Vocabulário europeu de filosofias. Ele é até agora a maior empreitada intelectual do século XXI, ao lado de O capital, de Thomas Piketty. Com mais de 1.500 páginas e centenas de colaboradores, o Vocabulário é mais conhecido nas quebradas pelo subtítulo: Dicionário das intraduzíveis, ou só como Os intra. Intraduzíveis são os conceitos centrais da filosofia europeia: práxis, sujeito, logos, experiência, ser, memória, dialética. É possível bater um escanteio sem conhecê-los. Mas a vida fica mais rica com eles.
Por refinar o conhecimento social de séculos, o Vocabulário é uma obra coletiva. Foi coordenado pela filóloga Barbara Cassin e teve centenas de colaboradores, entre eles os filósofos Alain Badiou, Étienne Balibar e Fernando Santoro, da UFRJ, e Jeanne-Marie Gagnebin, professora da PUC de São Paulo. Estranhamente, é um livro francês, dado que o idioma por excelência da filosofia europeia é o alemão. Mais estranhamente ainda, o livro foi traduzido para o árabe e há pouco para o inglês — e o Vocabulário é uma revolta contra a adoção do inglês globalizado como língua franca. Ao defender o seu idioma original, o livro explica: “O privilégio concedido ao francês não se deve a qualquer característica intrínseca da língua, mas à possibilidade de uma destinação universal e democrática da filosofia. Língua mais de mulheres e de proletários do que de sábios, o francês filosófico se assenta na convicção de que o ato de pensamento é aberto e destinado a todos.”
O Vocabulário também diz que “a língua portuguesa, por sua sintaxe flexível, suas inversões de pontuação, seu engasgamento pelos excessos e pelas figuras retóricas, é uma língua barroca”. A definição é um gol, cabe perfeitamente para o idioma futebolístico: o discurso sem fim, cheio de dribles e manhas, que tenta captar em palavras um jogo sempre esquivo.
******
Mario Sergio Conti é jornalista