A Copa do Mundo avança para as oitavas de final. Começamos hoje o angustiante mata-mata, ninguém pode adivinhar o que vai acontecer. Mas podemos comemorar que, até aqui, a seleção até que não vai mal. Não temos mais um daqueles times de sonho do passado, um dos que o cineasta e pensador italiano Pier Paolo Pasolini celebrou como “a invenção do futebol de poesia”. Mas o que temos dá para o gasto, não fica a dever muito aos outros favoritos.
Aliás, como na vida real, estão acabando os favoritos. Entre as 16 seleções classificadas para as oitavas, metade estava bem longe de ser favorita. O futebol é o único esporte em que nem sempre o melhor time ganha o jogo, mas aqui se trata também de uma evidente evolução dos que já foram menos bons.
O futebol mundial deixou a sem-gracice cerebral das defesas fechadas, trocou-a pelo espetáculo do drible e do gol. Essa mudança se acelerou nesses últimos anos, graças à televisão e à internet. Todo mundo tem acesso instantâneo a qualquer jogo em qualquer continente, sabemos quem são os craques e como se está praticando o esporte bretão por aí. Não há mais aquele mistério desvendado apenas de quatro em quatro anos, o melhor futebol está ao alcance de todos. E o mundo aprendeu a jogar bola, de Honduras ao Irã, da Costa do Marfim à Coreia do Sul.
Nessas duas últimas semanas, o Brasil viveu em sursis. A realidade cotidiana desapareceu para dar lugar à fantasia da Copa do Mundo, durante a qual só nos interessa saber para onde vai a bola. Nossos heróis correm atrás dela, só temos olhos para a testa de Van Persie, os dentes de Luis Suárez, os pés mágicos de Neymar. Mas essa aparente “alienação” do real nos ensina muita coisa que pode ser importante para depois que a festa acabar.
Ela nos ensina, por exemplo, a superioridade da alegria sobre a tristeza, mas também a inevitabilidade da frustração e da dor. Aprendemos que a solidariedade e a sensação de pertencimento são indispensáveis para que uma coletividade sobreviva às desgraças. Além de reforçarem as vitórias.
Saudades da ilusão da Copa
A torcida é uma família compulsória que não escolhemos, mas acolhemos, abraçando todo mundo com o grito de gol. No campo, todos têm direito às mesmas oportunidades e liberdade para aproveitar-se delas. O jogo tem, como diz o comentarista, regras claras; devemos respeitá-las sob o risco de sermos expulsos da partida. O adversário tem a mesma obrigação, e não podemos fazer nada se o gol (legal) for feito por ele. Parece uma metáfora da democracia.
Enquanto nossos rapazes jogam lá embaixo, na grama verde, em nossas cadeiras coloridas (não existe mais arquibancada, a Fifa não deixa) animamos com cantos as nossas diferenças. Para que tudo acabe no mesmo botequim e calçada ou em botequins e calçadas semelhantes, depois de encerrado o jogo.
A Copa do Mundo traz muitos estrangeiros ao Brasil. Alguns já nos conhecem, mas a grande maioria ignora quem somos, a não ser pelos estereótipos difundidos em seus países. Eles ocupam nossos estádios e cidades como se fossem território deles, espalham com suas bandeiras e cantos uma vontade de dividirmos com os outros o que é nosso, como se o que é nosso fosse de todos. E assim os conhecemos melhor, reiteramos nossas diferenças e descobrimos como, apesar delas, somos tão parecidos.
Como esse excitante turismo é majoritariamente masculino, o Rio de Janeiro nesses dias cheira a dopamina e testosterona. Pelo que vejo na televisão, nas outras cidades-sede tem sido a mesma coisa, uma euforia pública que nem as derrotas são capazes de evitar. Eles atacam nossas moças em ruas e bares, com a mesma ansiedade com que conduzem a bola no gramado. E, muitas vezes, fazem belos gols pelas esquinas da cidade.
Pois o futebol é uma criação humana parecida com o sexo por amor. Os corpos, sejam nossos ou dos outros, se encontram sempre em estado febril de tensão, com ansiedade e sem coreografia previamente ensaiada. Quando eu era adolescente e jogava pelada nos terrenos baldios de Botafogo, se um de nós desse um drible no adversário, dizíamos que o atacante “comera” o marcador. O drible embala nossas fantasias, o desejo de gol não é assim tão superior ao gozo da bela jogada. Devemos muito de nosso caráter ao futebol.
Dia 14 de julho, a Quarta-Feira de Cinzas da Copa do Mundo, acordaremos de ressaca, mesmo que não tenhamos bebido nada, sejamos ou não campeões. Nossa camisa amarela, com o nome de Neymar Jr às costas, estará pelo chão esperando que deixemos o langor e a enfiemos na cesta de roupas para lavar. O mundo estará mais sombrio, não acharemos graça em nada. Voltaremos a pensar nos absurdos que a Fifa cometeu, no superfaturamento da Refinaria Abreu e Lima, na falta de convicções com que os políticos e os partidos tratavam as eleições de outubro enquanto íamos ao Maracanã.
Teremos saudades da ilusão da Copa. Mas talvez descubramos também que, quando a fantasia nos ajuda a viver melhor, quando ela é melhor do que a realidade, tanto pior para a realidade. E está na hora de entrarmos em campo para torná-la mais próxima da fantasia.
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Cacá Diegues é cineasta