Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Outro legado da Copa

Além de estádios, aeroportos e alguns novos serviços de transporte, a Copa do Mundo no Brasil deixa um outro grande legado: a certeza de que precisamos ampliar a liberdade de expressão no país.

Restrita a alguns jornalões diários, a revistas semanais monocórdicas (com exceção da CartaCapital) e a um conjunto oligopolizado de emissoras de rádio e TV, a informação homogênea, já denunciada há muito tempo pela mídia alternativa, tornou-se cristalina nesta Copa.

A revista semanal de maior tiragem chegou a anunciar que devido ao ritmo das obras dos estádios o Brasil só teria condições de realizar a Copa em 2038. Mas não foi só ela que vendeu essa mentira aos brasileiros. Foi a mais descarada, sem dúvida, não contando, no entanto, com o privilégio da exclusividade.

Basta consultar os jornais ou conseguir acesso aos telejornais dos últimos anos para constatar que todos rezaram pela mesma cartilha. O objetivo era desacreditar da capacidade do governo brasileiro em oferecer as condições necessárias para a realização de um evento desse porte.

A expressão “imagina na Copa” foi uma das mais ouvidas em aeroportos, rodoviárias, avenidas e estradas congestionadas e até em filas de bares e restaurantes, nos últimos tempos. Refletia a expectativa negativa criada pela mídia em torno do evento.

O clima ruim propagado dessa forma se alastrou mundo afora. Equipes estrangeiras de jornalistas baseadas no Brasil são raras. Na maioria dos casos, a cobertura do país é realizada por apenas um correspondente que se pauta, invariavelmente, pela mídia nativa.

Maior liberdade de expressão

Deu no que deu. Até uma Brazuca (bola oficial desta Copa) incandescente se aproximando como um meteoro mortal sobre o Rio de Janeiro ilustrou a capa de uma revista alemã. O Brasil era um perigo para quem por aqui se aventurasse neste 2014. Governos de alguns países alertaram seus cidadãos para esses riscos.

Tentava-se destruir em pouco tempo todo o esforço empreendido pelo governo brasileiro, a partir de 2002, para fazer do país um ator respeitado, não apenas pelas transformações que operava internamente, mas também por sua seriedade e capacidade de ação política no cenário internacional.

Basta lembrar o protagonismo de Brasília, ao lado do governo turco, ao alinhavar com o Irã um acordo nuclear estimulado e depois boicotado pelos Estados Unidos.

Há uma cena impagável no filme Habemus Papam, do diretor italiano Nanni Moretti, quando, após a morte do papa, o seu sucessor (representado pelo excelente Michel Piccoli) reluta em assumir o posto. Um dos cardeais, desesperado com a demora, alerta que daquele jeito logo o presidente do Brasil estaria por lá para ajudar a encontrar uma solução.

Ao que tudo indica, no entanto, lá como cá, a população não foi na onda da mídia. Estádios, ruas e praças estão lotados, nunca houve tantos turistas circulando pelo Brasil ao mesmo tempo como nestes dias. Talvez pudessem ter vindo mais, não fossem os fantasmas plantados pela mídia.

Até a crítica de que o ex-presidente Lula exagerou ao propor à Fifa um número maior de cidades-sede para a Copa foi por água abaixo. Todas estão dando conta do recado. Só é lamentável que cidades como Belém ou Florianópolis tenham ficado de fora. Em vez de 12 poderiam ter sido 14 ou, quem sabe, 16.

Diante de tudo isso os meios de comunicação farão autocrítica ou serão responsabilizados pelas perdas causadas ao país? Claro que não. Basta ver que a torcida contra não desapareceu. Pequenos incidentes, comuns a qualquer grande evento, seguem tendo destaque. Para não falar da mesma revista, antes mencionada, que soltou a manchete: “Só alegria até agora”. O “até agora” é revelador da intenção.

Ao transitar das questões estritamente políticas para as político-esportivas a mídia tradicional deu uma contribuição importante para a revelação a um público mais amplo do seu papel disseminador de um pensamento único, antagônico aos interesses da ampla maioria da população brasileira.

Tiragens de jornais e revistas em queda, audiências de telejornais despencando são as respostas do público, cada vez mais consciente de que, por esses meios, não escapa do pensamento único.

Como através do mercado não há solução para o problema – ao contrário, ele só joga a favor da concentração da propriedade dos meios –, resta a saída única da presença do Estado, regulando a comunicação para ampliar a liberdade de expressão.

A consciência dessa necessidade por camadas cada vez mais amplas da população é, sem dúvida, um dos maiores legados da Copa das Copas.

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Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e autor, entre outros, de A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão