A Copa do Mundo entra na reta de chegada, com nossa seleção sofrendo horrores para passar pelo Chile e se manter no páreo, e eis que antes mesmo de ver quem levanta o caneco, já há quem se ocupe em zoar – não com os que já tomaram o rumo de casa, mas com aqueles que não viam o evento com bons olhos. Ou seja, com uma parcela considerável da população, dir-se-ia até a parte mais lúcida e responsável, justificadamente alarmada com os inúmeros fatores negativos que desaconselhavam a promoção de tão dispendioso evento num país com tantas carências e inveterado portador da síndrome da malversação de recursos.
Zoam e tripudiam como se a reversão das expectativas e o inesperado sucesso da competição fossem uma derrota pessoal para os que foram contra, os que receavam que as coisas desandassem e a imagem do país ficasse pior do que pau de galinheiro. Preocupação mais do que justificada em função dos atrasos e da improvisação que marcaram os preparativos, sem falar da turbulência interna motivada pelo crescente descontentamento popular com a estagnação do país e a eterna postergação de medidas saneadoras, como a reforma política, do judiciário, só para citar duas das mais urgentes.
Mas nada que os sabujos e arrivistas do governo petista levem em conta em seus inventários oportunistas até mesmo contra quem, coerentemente, trata de manter o equilíbrio ou até mesmo dar a mão à palmatória, reconhecendo que o tom negativo e marrento talvez tenha sido exagerado. Que se subestimou e até se desdenhou indevidamente da capacidade do país de dar conta do rigoroso padrão de qualidade exigido pela Fifa, cuja competência no gerenciamento do evento, diga-se de passagem, também é digno de reconhecimento. Sim, pois se os estádios e as obras de infraestrutura funcionaram a contento, garantindo o bom andamento dos jogos e normalidade no fluxo dos mais de 200 mil visitantes atraídos pela Copa, o know how da Fifa sem dúvida foi – e está sendo – determinante para que tudo esteja correndo bem.
A especialidade do chupim
Tão bem que a imprensa em geral não demorou a se render ao clima festivo e contagiante que foi se alastrando tão logo a bola começou a rolar. Algo até certo ponto previsível, dado o irresistível apelo inerente a paixão futebolística, notadamente no Brasil, mas que superou a expectativa por conta de uma espécie de trégua social, por assim dizer, que fez a população deixar para trás as restrições e a própria disposição de boicotar o evento. Eis porque soam disparatadas e até ridículas as alusões ao sempre evocado complexo de vira-lata, que segundo os exegetas de plantão corresponderia aos pessimistas e críticos do evento e que estaria agora órfãos de pai e mãe, mais perdido do que em dia de mudança, diante do que consideram uma confirmação do golaço que foi trazer a Copa para o Brasil.
Sob o festivo prisma reinante, pode ser, mas ainda assim, mais honesto seria salientar que é preciso esperar pelo day after para se fazer balanços definitivos. A rigor, a conclusão das obras a tempo e o bom andamento das coisas até aqui representam apenas um lado da moeda. Não basta apenas matar o touro a unha, o que de resto está longe de ser novidade para o brasileiro, os questionamentos e dúvidas que persistem dizem respeito às consequências de gastos tão vultosos em tempos de vacas magras. Da mesma forma como as sombrias previsões iniciais felizmente caíram por terra, congratulações e comemorações efusivas, bem como de menoscabo aos críticos do evento, não deixam de ser igualmente precipitadas com o balacobaco no auge. Desmontado o circo, despachados os visitantes, ter-se-á uma visão mais realista das coisas.
De qualquer forma, dissensões momentaneamente abafadas pela Copa do Mundo continuam vindo à tona, sob qualquer pretexto. Pouco importa se infladas por raciocínios tortuosos e comparações provocativas, como a tentativa de relacionar a oposição à realização da Copa no Brasil a uma presumível visão provinciana e tacanha, que corresponderia ao tal complexo de inferioridade pinçado do sarcástico universo rodrigueano, debochando de nosso secular atraso.
Bobagens, ignorância e má-fé se misturam em ilações que se apegam a aspectos isolados e circunstanciais para formular conceitos desprovidos de seriedade e coerência, que soam como mera provocação ou vocação para a singular especialidade de um conhecido pássaro: o chupim, por motivos óbvios também conhecido como vira-bosta. Cuja fêmea, por sinal, se distingue por um hábito não menos peculiar, por depositar clandestinamente seus ovos no ninho do tico-tico, para que este, inadvertidamente, possa chocá-los. Qualquer semelhança com fatos sobejamente conhecidos e acima relatados…
A conta ainda está por vir
Nesse métier inglório em que ambas as partes virtualmente se refestelam com os despojos de uma guerra verbal ferrenha e inescrupulosa, o compromisso com a verdade parece ser o de menos, tal a recorrência com que versões são manipuladas conforme as conveniências de lado a lado. Cenário, como se sabe, configurado pela tradição oposicionista da grande imprensa, e a não menos acintosa e representativa ala chapa-branca que demarca o jornalismo de hoje em dia, empenhados num corpo a corpo feroz volatizado em sites e blogs que, quando não assumem descaradamente seu partidarismo, não se pejam em exibir preferências e estampar patrocínios no mínimo suspeitos, para não dizer comprometedores.
Por mais que o pluralismo e a diversidade de opiniões sejam essenciais no exercício do jornalismo, para a imprensa institucional, no entanto, o pendor à manipulação ostensiva de fatos e versões fantasiosas ganham contornos de fraude, enganação, e em última analise, auto-sabotagem. Afinal, quando já não se sabe em quem acreditar, no que acreditar, seja no âmbito político como em relação a uma imprensa cada vez mais engajada, o sentimento que fica é de total descrença e desorientação. Tipo assim, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.
Tudo bem que leigos e amadores ignorem que o exercício da crítica não se esgota simplesmente em apontar defeitos e meter o pau, como se diz popularmente. Mas de profissionais e observadores da faina midiática espera-se que tenham a integridade e a decência de exercer a crítica de forma mais abrangente e equidistante, que não se atenham apenas aos aspectos negativos, elogiem a quem de direito, e sobretudo, não percam de vista a regra mais elementar de uma imprensa que se preze : que pau que bate em Chico, bate em Francisco.
Fico me perguntando que mérito há, por exemplo, em críticas gratuitas e oportunistas endereçadas, pasmem, a quem se dispõem a fazer o nobre e salutar exercício da mea culpa, e no caso específico da Copa, ainda que canhestramente, se penitenciar pelo enfoque negativo que cercou a realização do evento no Brasil. Refiro-me a extensa matéria apresentada por William Bonner no Jornal Nacional, em que não só em nome da Globo como na exibição das manifestações de desagravo veiculadas pela imprensa internacional, a propósito das previsões alarmistas em torno da capacidade do país de sediar um evento desta magnitude.
Um gesto digno, decente, à altura do profissional reconhecidamente correto em questão, e que deveria ser aplaudido ao invés de execrado, mesmo porque as previsões podem ter sido exageradas, mas não infundadas, é bom que se frise. Afinal, em que pese o saldo altamente positivo até aqui, nunca é demais lembrar que o rescaldo e a parte dolorosa ainda estão por vir. E nem estou falando de uma eventual eliminação brasileira, que contra o Chile bateu literalmente na trave, e sim do l’argent, daconta propriamente dita.
Conta que já faz estragos consideráveis no comércio e principalmente na atividade industrial, camuflados pela euforia da Copa, com o agravamento do quadro de estagnação da economia. E só Deus sabe como ficará quando os bilhões gastos com a realização do megaevento começarem a pesar no bolso dos contribuintes. Na certa, guapecas e chupins terão material de sobra para remexer.
******
Ivan Berger é jornalista